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"Histórias de Quem Não Viaja"

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Mensagem por Zé Joelho Seg 14 Mar 2016, 21:58

"Hering"


Em um planeta azulado em um sistema distante da maioria, grande e molhado, Henrig-Shink descia em seu módulo privado. O planeta era basicamente água, salpicado e ilhotas com raras extensões de terras maiores que um bairro de sua cidade-natal. Haviam montanhas sim, ao norte. Henrig é, de fato, um ser sortudo e iria cair exatamente onde há uma montanha com rochas pontudas. A única com nome - deveras encorajador- de "Garfo do Diabo Branco". E claro, o módulo teve uma pequena explosão um pouco depois de entrar na atmosfera do planeta. Hering gosta de alpinismo sim, mas fez pouco: Já subiu a escada para alcançar revistas velhas e no processo, que se passou mais da metade no hospital, perdeu um osso do ombro.

As pedras pontudas eram esmeralda com tímidas safiras, tudo coroado com o diamante negro em sua ponta. Uma obra de arte natural intocável. Tudo teria cor rubi em alguns minutos, talvez. Hering girava com sua nave violentamente deixando um rastro brilhante de destroços no céu do planeta, digno de fotos... Digno de pedidos! "Quero que o irmão dele morra." Hering chegou se enturmando e com trabalho. Mas para matar o irmão do jovem mal caráter terreno, Hering devia sair dali. Como? Só tinha um corpo laranja escuro enrugado, meio acima do peso e com sua mochila de calor. Sem esse bloco de metal nas costas Hering morreria em qualquer planeta em cinco minutos! Ele já ouviu falar! A mochila estava, no entanto, tão clara quando o Sol de Irê, sua casa, e a vontade de tentar cortar fora era plausível.

Uma ave preta de lindas penas de ponta azul anil, colar branco de penas quase transparentes e olhos vermelhos voava com a tranquilidade de um sábio. Linda. Como ficaria estirada no módulo privado de Hering? Não deu para ver; explodiu-se em penas chamuscadas e sangue. Tal atrocidade com tal lindo animal trouxe milagres: a placa de metal incandescente diminuiu um pouco de velocidade e se estabilizou. A ponta do diamante negro não era problema agora que a queda mudou de trajetória e agora esmagaria algo como um templo ao pé da montanha. Por sorte vivia um idoso bem humorado e de bem com a vida lá e com enorme família por todo o planeta. Não reclame, senhor, tá na hora né?

Dentro do módulo Hering terminava de vomitar. Vomitou de novo, odeia quedas. Olhou em sua volta.
- Agora... Agora dá pra fazer algo, não? Computador?!

Uma voz robótica saiu de sua mochila, como se suspirasse em desânimo:
- Tente o manche. Tá no manual.

Hering agarrou o manche e queimou as mãos. Com um grito amaldiçoou todas as estrelas do céu.
- Isso é sério, Tartius. Se eu morrer aqui, você desliga também! Pera... - todo o corpo de Hering congelou com o passar de uma brisa de pensamento - se eu morrer... Tantos processos inacabados! Eu nem devia estar aqui! E meus pais? E Sue? E minha coleção de Caccon?

Engoliu a seco e quase cochichou:
- E meu marcador de página?
- Você é mesmo um sujeito impressionante. - disse Tartius - Quer saber? Vamos morrer. Eu prefiro assim.
- Não é hora para ironia, Tartius!
- São 12:36 nesse planeta e 18:45 em Irê...
- Tartius.
- Sim?
- Chances de sobrevivência.

Um silêncio tomou a cabine que agora tremia bem menos e o chão crescia rápido.
- Tão poucas assim? - indagou Hering
- Deixa acontecer.
- Números, Tartius!
- 13%.
- De sobrevivermos? Ai meu divino Embargador, o que fazemos? Tartius! Tartius, faça algo!

Uma música de valsa começa a tocar na cabine. Hering agora tem um olhar vazio para a janela, esperando o impacto.

E de fato acontece. Três impactos, sendo um deles molhado. Hering desmaiou no primeiro e assim ficou por pelo menos três minutos. O metabolismo acelerado de sua raça não deixava o corpo desligado por muito tempo. Olhou para a janela em pedaços e a chutou até que saísse da lateral do latão. Pulou para fora e caiu de joelhos e, tocando a grama, começou a chorar.

- Estamos vivos! Ha! Estamos vivos, Tartius!
- Que ótimo. - a voz robótica podia lhe enganar pensando que alguém revirava os olhos
- Eu nem acredito! Agora, bem, vamos ao procedimento. Dano?
- Como assim? Olha pro módulo. Tá destruído.
- Vitais.
- Estamos vivos. Eba. - a frieza da mochila de Hering afastava até os pequenos animais curiosos pela estrela que caíra
- Sua carga e situação, Tartius.

Um barulho de cascalho e ranger de metal soou baixo.

- EQUIPAMENTO DANIFICADO. RESERVA DISPONÍVEL: CIN-CO DI-AS TERRA. - disse Tartius com voz automática padrão - Nossa, odeio quando tenho que falar padrão.
- Temos cento e vinte horas de vida então.
- E mais cinco minutos de você agonizando sem energia que, infelizmente, não estarei aqui para proporcionar.

Voltando sua atenção para o rastro de sua queda Hering percebe que bateram um pouco ao lado da casa do velho, por muito pouco mesmo. O estrondo quebrou algumas janelas e talvez porcelana, mas a casa vive. Quem não vive é o velho que saíra justamente para fumar seu cachimbo. Ele tinha câncer de pulmão e o estava vencendo. Hering não sabia que matara alguém, o sangue se espalhou ao longo da vala extensa que parava em uma árvore e depois finalmente a bola de metal retorcido, o módulo.
Hering imitava uma fêmea agora:
- "Esse módulo é de qualidade e tem seguro." To vendo! - coçou a barba rala do queixo quadrado - Nunca mais espero oito meses para comprar uma nave na Stolo. Tartius, capital!
- Estamos sem dinheiro.
- Capital ou cidade mais próxima, Tartius.
- 150km ao sudoeste.
- Estamos longe demais.
- Observador.

Antes que Hering pudesse reclamar de mais alguma coisa uma nave irrompeu por de trás de umas das ilhas ao sudoeste, vindo em sua direção cambaleante, vidros escuros. Era uma nave terrena. Hering não perdeu tempo em saltitar.
- Ei! Aqui! Ajuda! Ei!

A nave acelarava cada vez mais e puxava para a esquerda, empenando para a ilha ao sul.
- Não! Aqui! Pra cá! P*ta que... - a nave então explodiu contra a margem da tal ilha - Magnífico. Muito legal.

A carcaça boiava ao longe e Hering se esforçava para tentar enxergar algum movimento. As vezes acenava para estimular uma possível visão embaçada do acidentado. Até que as ondas fizeram o favor de virar a nave de ponta cabeça e faze-la afundar devagar. Um braço saiu da cabine, com ossos a mostra.
- Temos que tentar ajudar! Tartius, chances de sobrevivência.
- Dele ou sua?
- Dele...
- 80%
- Sério? Vou entrar na água, ligue a vedação.

Hering nadou até o braço com dificuldade. Sua vida sedentária em mesa de escritório lhe deu "ossos largos". Nadar naquele mar parecia nadar em areia movediça. Cada vez que acelerava as braçadas, menos avançava. Segurou o desespero e chegou a cabine quase cheia d'água. Um rosto ensanguentado procurava o mínimo de ar.
- Aguenta! Vou tirar você daí! - Gritou Hering
- Fod*-se você. Casei com sua tia. - disse o moribundo
- O que? Amigo, olha para sua situação...
- Olha para sua vida, rapaz. Toma tendência.
- Esse parece esperto - Disse Tartius

A mão esticada e cheia de ossos expostos do moribundo carregava uma medalha prata com bronze. Hering notou isso com muito grito e desespero após a mão do, agora morto, "Capitão Boca". Também conhecido como "Boca Suja". A nave terminou de afundar puxando tudo para baixo e a força que Hering fez resultou apenas em uma amputação. Hering nadou de volta para terra firme, do lado de sua nave chamuscada e pintada de dois tons de vermelho: Vermelho velho e vermelho pássaro raro. Se apoiou na lataria para respirar depois da natação repleta de caibras.
- Olhe para o colar de novo, preciso verificar algo. - disse Tartius
- Colar? - Hering não entendera
- Da mão que tá presa no teu macacão desde seu ataque de histeria.
- Ai! Ainda está comigo!

Tartius escaneou o colar e percebeu uma micro moeda no meio. Lá estava escrito:

Não sei quem és
Pra nada vales
Vá para Endmé
Vá para os sabres


- O que quer dizer, Tartius?
- Propaganda barata.

Hering sentou no chão, balançou-se em posição fetal e depois deitou.
- Olha, podia ser bem pior. Podia chover agora.

Olhou para cima e as nuvens estavam dissipadas e não apresentavam qualquer perigo, apenas o Sol branco e pequeno. A sorte não tentara humorizar a cena, porém ao baixar os olhos na linha do horizonte novamente, viu várias naves em linha; uma grande frota. Chegou a levantar e acenar, mas logo se arrependeu. As cabines eram abertas e vira um bando de homens furiosos e armados. Podia jurar que podia ver a vermelhidão da raiva tocar o mar. Eram a polícia.
- Sério, só chover tava ótimo.
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Mensagem por Thear Seg 14 Mar 2016, 22:42

E meu marcador de página?
Ótimo! 

Fazia tempo (anos!!) que não lia um de seus textos de comédia (tu sabe quais foram os últimos, né?), tu é bom nisso. Ansioso para saber como continuam as desventuras de Hering.
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Mensagem por Tarin Ter 15 Mar 2016, 01:34

Zé Joelho escreveu:Propaganda barata
Hahahaha

O texto é bem divertido, principalmente nas interações do Hering e Tartius. As coisas acontecem de um jeito inesperado, deixando o texto mais dinâmico de ler. E as pontas soltas do texto(a medalha, a polícia, etc) me deixam curioso pra saber como vai continuar.
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Mensagem por Tomate Ter 15 Mar 2016, 01:39

Texto dinâmico, simples e engraçado. Parabéns, Zé. Ansioso pelo segundo capítulo, mas deixa eu dar uns pitacos:

Gostei do jeito que escreve os personagens e o ambiente, é impressionante. Mas o dinamismo, às vezes, pode deixar o texto um pouco confuso, tente acertar isso para deixar o (possível) segundo capítulo ainda melhor que o primeiro (pois é possível).

No mais, aguardando... E lendo...
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Mensagem por Zé Joelho Sex 17 Ago 2018, 22:55

“Prisão Alb-Vechi”

Um ser vivo inteligente tem de entender três coisas sobre esse planeta, que aliás se chama Allovíz. Primeiro que foi um planeta encomendado e sua venda foi ilegal. Planetas encomendados podem ser criados do zero com explosões e campos gravitacionais, resfriamentos e adição de metais para enriquecer o solo; ou, os mais comuns, podem ser alterados na medida que o comprador bem entender. Um planeta encomendado deve passar por procedimentos específicos para que o clima seja balanceado e possa sustentar vida sem muitos reparos de serviços dos climatólogos. O problema é que Allovíz era para ter sido um planeta montanhoso com pequenos oceanos, entretanto o serviço foi tão mal feito que quase tudo alagou e virou então um planeta cheio de arquipélagos com pequenos continentes.

Segunda questão a ser sabida é o porquê de ser ilegal: Os compradores queriam um planeta-minério barato, com mão de obra barata, então optaram por ignorar acordos e direitos universais para, digamos, “facilitar a vida de todo mundo”- nessa sentença “tudo mundo” pode ser lido “os donos”. Mesmo na ilegalidade conseguiu-se atrair diversas espécies de seres inteligentes que buscavam um novo lar, seja por causa das guerras frequentes ou pelas fugas de fora-da-lei. No caso de Allovíz os delinquentes se multiplicaram como baratas - mesmo porque o que um planeta ilegal iria fazer? Pedir ajuda?

A terceira e último ponto é que os compradores morreram. Não totalmente, eles passaram por crises e perderam grande parte de seu patrimônio. Não perderam Allovíz, na verdade esqueceram que a tem. Além de problemas constantes com o clima do planeta, problemas de infraestrutura e violência causados pelo crescimento descontrolado e dependência de comércio exterior, os donos sumiram e não auxiliam nem em administração e nem com recursos. Esse caos político, social e ambiental está em vigência a pelo menos 340 anos Terra – uns 170 anos em Allovíz. O planeta tem o tamanho de uma Terra e meia, tudo bem? Ninguém no planeta sabe fazer conta direito.

Hering foi levado para a Prisão “Alb-Vechi” – ou Albivec, para facilitar. Albivec é uma das enormes estruturas e instituições desse planeta movimentando treze por cento de todo o PIB mundial e abrigando um dos maiores e mais diversos mercados também. E já foi a capital do planeta por três dias no que ficou conhecido como “Interregno sem pressa”. Sim, é uma prisão-mercado. Praticamente todas as prisões de Allovíz são prisão-mercado. Menos a prisão de Yeri, que já foi lar de idosos uma vez e hoje é um estacionamento. “Albivec” quer dizer, literalmente, Velho Branco, em homenagem ao primeiro Diretor Hec-Volbe “O Branco”. Hoje em dia o diretor é seu sucessor Hec-Aldalpon, “O Sem Apelido” que tem cento e setenta e dois anos.

Albivec é um edifício enorme de dezoito andares, sendo seis subterrâneos. Os limites da prisão são praticamente os limites da ilhota em que está construída. A entrada terrestre tem não mais que vinte metros de encosta até os portões do edifício, sendo a maior faixa de terra envolta do chumbo, concreto, madeira e cuspe. A principal área de acesso, na verdade, é pelo terceiro andar onde há uma enorme varanda, tão grande quanto o andar em si. Naves pousam e decolam dali com produtos, escravos e comida para todos os cantos do planeta. As embarcações podem atracar logo abaixo que há elevadores para o terceiro andar.

Todos os andares são grandes salões de comércio, enormes alas vendendo e comprando tudo que for possível jogar dinheiro e conseguir algo em troca. A maioria das celas – sim, era para ser uma prisão comum – foram alteradas para serem salas vips de negociações ou servirem de hotel. Algumas pessoas moram lá, sejam elas condenados ou não. A lavanderia fica no décimo andar, há um andar de jogos e um andar-banheiro com chuveiros, vasos e barracas de sorvetes.

Os andares subterrâneos são dois andares de sala de máquinas para gerar energia, fazer água potável correr os canos de tanta gente e reaproveitar todo o lixo produzido pelo prédio. Abaixo desses andares tem o que seriam as alas de prisões de fato. Sim, algumas pessoas conseguem se comportar tão mal que são presas na prisão. Ou são pobres e não conseguem sair dali. São quatro andares para seiscentas pessoas. É bem apertado e insalubre, mas lá também tem um mercadinho.

Os agentes da lei e da ordem, os que manteriam os crimes em baixa e conteriam todos na prisão, depois de anos de corrupção e abandono de um sistema de governo, se tornaram milicianos, corretores de celas e donos de esquema de apostas e agiotagem. Veja, de alguma forma os agentes ainda respondem a uma autoridade maior por um motivo de convivência: Hec-Adalpon é tão velho que dorme por meses em algumas ocasiões, e tão cego que um dia acordou no meio de uma briga generalizada, foi ao andar dos banheiros e voltou para seu gabinete, na cobertura, para dormir novamente. Esse dia ficou conhecido como “Dia do Quase”.

Veja, Hec-Adalpon é da família mais rica de Allovíz, a família que controla praticamente tudo, inclusive a única força organizada e mobilizada capaz de defender os bens, negócios e vida dos consanguíneos Bresque – primos de Hec-Adalpon. O problema é que o velho cego ainda carrega em sua mente confusa um senso de ordem de justiça dos tempos que alguma organização havia em Allovíz. Em meio a seus devaneios lembrando de seu tempo de jovem e suas eventuais idas ao banheiro comprar picolé, há um patrono dos bons costumes e zelador da boa-fé. Tanto os Agentes quanto os detentos se esforçam para não acordar o velho mais vezes que o necessário, mas também não procuram mata-lo, pois caso suspeitem de assassinato era capaz dos Bresque virem reclamar direito sob o prédio, negócios e o salão de jogos. Encostar no salão de jogos levou pelo menos metade das pessoas amontoadas no subterrâneo.

Foi para este lugar caótico que Hering foi levado a dois dias atrás. E é na pequena costa de terra entre o portão e o mar que Hering está em pé, completamente perdido.
Antes de ontem os agentes o levaram para o gabinete de Hec-Adalpon, pois parece que o velho que Hering esmagara era um amado Agente de Albivec aposentado e idealizador do purê com peixe cremoso nas quintas-feiras. O velho Bresque, ao saber da morte do Agente, que tinha acabado de avisar que estava melhorando de sua condição, pediu para que quando o culpado chegasse fosse diretamente para sua sala.

Quando Hering chegou a sua sala o velho estava acordado. O Agente saiu fechando a grossa porta de ferro atrás de Hering, deixando-o a sós com o velho na enorme sala cinza com azul claro. Em frente a porta e quase no fundo da sala estava a mesa simples de mogno de Hec-Adalpon com as únicas duas janelas atrás de si.
Houve dois minutos muito longos de silêncio. Hering tremia e a mochila metálica nas suas costas fazia barulho com suas vibrações. Tartius poderia falar diretamente dentro da cabeça de Hering por ligações com seu cérebro, mas também podia se comunicar por uma caixa de som na mochila, e assim o fez:
- É um velho cego. Acho que você dá conta.
- Pelo amor do Desembargador Farber, precisava falar alto, Tartius? – Hering tentava alcançar a saída de som da mochila, mas não conseguia. Como sempre.

O velho desceu da cadeira em um movimento lento, quase que caindo da cadeira, que não estava tão alta. Deu a volta na mesa que quase durou os dois minutos iniciais da não conversa. Limpou a garganta, mas com a voz ainda roca o velho respondeu:
- Você acha que é esperto, não? Jovem... – Hec-Adalpon chamava todos em Allovíz de jovem, pois de fato devia ser o mais velho de todos - ... já lidei com tantos como tu.
- Senhor, foi um mal-entendido!
Hering suava muito e fora interrompido pelo velho. Possivelmente também tinha algum nível de surdez.
- Meu nome é Hec-Adalpon Bresque. Eu sou o Diretor dessa grandiosa e honrosa prisão. Lido com degenerados como você a anos... – As últimas palavras pareciam desaparecer com o fôlego do cego
- “Degenerado” é uma boa palavra para descrever o que acontece no décimo primeiro andar. – retrucou Tartius
- Pare, Tartius. Por favor. – tapas de Hering na mochila metálica fizeram um som digital ecoar.

O velho levantou lentamente a sobrancelha e parecia tentar falar mais alto:
- Eu disse que meu nome é Hec-Adalpon Bresque, jovem. Bastião da justiça!
- Eu ouvi. – respondeu Hering
- Eu não ligo. – acrescentou Tartius
- Não liga o que? – o velho tentava entender
- Nada. É que Tartius...
- Meu nome é Hec-Adalpon Bre... – o velho se repetia
Enquanto o velho voltava a falar seu nome e condecorações, Tartius provocava:
- Acho que não ouvi dessa vez.
Hering cochichava “Pare de provocar, Tartius!”, porém quem respondeu foi o velho:
- Quer que eu me aproxime? Tem algum problema de escuta? – o velho se aproximava e se esforçava ainda mais para falar – Meu nomre é Hec-Adalpon...
Tartius continuava: - Eu não tenho ouvidos.
- Senhor eu já escutei – Hering tentava ignorar Tartius
- Você não tem ouvidos? Que tipo de espécie é você?
- Eu sou Hering e eu...
- ... que conversa cansativa. – Tartius parecia bufar pela saída de som
- Eu sou o Diretor dessa prisão. – o velho continuava- O senhor entende isso?
- Perfeitamente.- Hering olhava para baixo sem perspectivas
- Que?
- Ah, não... – Tartius se desesperava

Após mais três ou quatro repetições de apresentações e histórico em cargos prisionais, o velho parou de falar, porém parou por mais tempo que uma respirada. Novamente Tartius quebra o silêncio:
- Acho que você matou ele.
- Não fale besteira. Ele pode estar nos ouvindo.
- Acho que se eu pudesse morrer assim, já teria morrido. Conversar com você é pior que atualizar o sistema...
O velho voltou a inspirar e a voz voltou ficar alta:
- Você matou o Agente Xos-Bian. Sua queda porca e desajeitada levou um dos meus melhores funcionários aposentados.
- Eu estava em queda descontrolada! Os controles não respondiam e eu ten...
- Eu poderia ter pousado aquela bola de metal com meus olhos fechados!
- Interessante autoestima e humor. – Tartius soltou
- O que de humor há nisso, jovem?! – o velho parecia se avermelhar
- Nada! – Hering levantava os braços para se proteger

Hec-Adalpon virou-se e ficou virado para a parede ao lado da janela, encarando a parede com a convicção de quem olhava o horizonte ensolarado. E ele pensava que era isso que encarava de fato:
- Vou te contar a história da minha vida até esse exato momento. Tudo começou com Hec-Volbe estacionando em Yeri e entrando no lar de idosos. Sim, naquela época ainda era um lar de idosos, ele na verdade estacionou na água...

Enquanto o velho falava para a parede, Hering notou que as câmeras da sala, pelo menos aquelas velharias que estavam à mostra, estavam com cabos cortados. O velho estava de costas e Hering do lado da porta ainda. Decidiu arriscar abri-la e escapar. Seu coração parecia que ia estourar! Como ele faria isso? Sem abrir nenhum processo, sem pedir permissão para sair, sem assinar nenhum papel ele iria contra uma autoridade. E foi o que fez. Puxou a porta e saiu em um pulo, enquanto o velho ainda falava.
- Nossa! Isso foi tão...tão... inapropriado. – Hering segurava os joelhos
- Analisando melhor agora, foi melhor sair mesmo. Aquele velho te venceria.
- Ele tava encarando a parede, Tartius.
- Ele pelo menos tinha convicção do que fazia.

Agora Hering, com sua mochila Tartius, estava em um pequeno corredor azul claro, sem saber o que fazer. Morrendo de medo ainda, andou um pouco e notou que um Agente estava mexendo em um aparelho em sua mão. O Agente o notou com uma olhada rápida por cima do aparelho e perguntou:
- É pra te levar pra onde?
- O que? – Hering tomou um susto
- O velho te mandou pra onde?
- Er... Ele disse para...- Hering tentava enrolar, mas não pensava em nada
- Décimo primeiro andar – Tartius respondeu.

O Agente parou de mexer no aparelho e o encarou por alguns segundos. Guardou o aparelho e suspirou fundo. Cruzou os braços roxos, tanto os de cima quando o de baixo:
- O Décimo Primeiro, é? Acha que é capaz?
- O que? Como assim Décimo Primeiro? Tartius? – Hering balbuciava
Tartius agora falou em sua cabeça “Pesquisei aqui na internet deles e tem coisas interessantes lá.” Hering perguntava que coisas seriam, Tartius não respondeu.
- Vou levar meus preservativos e algum dinheiro. – Disse o Agente – O velho te falou o que? Aposto que se apresentou algumas vezes


Para evitar qualquer constrangimento ou trauma, resumiremos que dois dias depois Hering estava de pé no pequeno trecho de terra entre o portão e o mar. Imóvel, com olhar perdido e mente perturbada:
- O que foi aquilo? – Hering tinha dificuldades de falar
- Eu iria de novo, com mais dinheiro e vacinado. – Tartius disse – Não tenho corpo, mas de alguma forma eu sinto que estou doente.
- As possibilidades de sobreviver nadando para qualquer lugar são muito baixas. – Tartius continuou – Melhor voltar para dentro e fazer contatos.
Hering permanecia quieto e com olhar vazio e perdido.

No gabinete do diretor, o velho agora estava sentado dormindo quando um Agente entrou em sua sala e o acordou:
- Senhor. Uma baixa: Agente Sind Yng.
- O quê? Mas ele estava aí no lado de fora ainda agora. Morreu como?
- DST, senhor.
- Espere. Onde está aquele meliante? Ele estava aqui agora a pouco. Matou Xos-Bian e agora Sind Yng!
- Senhor, Agente Yng morreu no Décimo Primeiro com duas latas de água com gás presas no...
- Alerta geral! – Interrompeu Hec-Adalpon – Busquem esse assassino!

O novo Agente suspirou fundo e respondeu:
- Sim, senhor.
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Mensagem por Thear Dom 19 Ago 2018, 20:54

Zé Joelho escreveu:... sendo a maior faixa de terra envolta do chumbo, concreto, madeira e cuspe...

Zé Joelho escreveu:...há um andar de jogos e um andar-banheiro com chuveiros, vasos e barracas de sorvetes...

Zé Joelho escreveu:...parece que o velho que Hering esmagara era um amado Agente de Albivec aposentado e idealizador do purê com peixe cremoso nas quintas-feiras....


Eu reli o primeiro capitulo antes de ler esse, e devo dizer que tu melhorou drásticamente. O primeiro era divertido, mas talvez tivesse um excesso de piadas (quase toda frase), e as vezes era muito confuso, precisando ler várias vezes um parágrafo para entender o que aconteceu.

Esse é perfeitamente claro e fácil de seguir, e o humor esta na medida certa e me lembra mais facilmente algo como o Guia do Mochileiro das Galaxias.

E o que mais me impressionou foi a descrição inicial da prisão. Pareceu um lugar no qual 100 contos diferentes poderiam se passar. Parabéns.


Eu estava considerando seriamente escrever um pouco de prosa esses dias, e ler teu texto me deixou mais determinado. Thank you.
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Mensagem por Tarin Seg 20 Ago 2018, 00:22

Concordo com o @Thear de que foi uma melhora drástica do primeiro e acho que tu seguiu bem a recomendação da última mensagem do @Tomate. A linguagem mais referencial e objetiva facilita bastante o entendimento do texto, alem de fazer com que o humor tenha mais destaque e seja mais impactante. Ainda tem uns excessos aqui ou ali, mas dá pra ver que tu tá encontrando o teu balanço.

A parte inicial do texto com a descrição do cenário foi muito bem estruturada. Ficou muito boa. Com a apresentação gradativa do planeta, á prisão, até o velho, orientando exatamente o ponto no qual a narrativa seria reiniciada. A duração foi no ponto, tambem. Se mantendo constantemente interessante sem se extender demais em nenhum aspecto.

O diálogo em si manteve as excentricidades divertidas dos personagens introduzidas no primeiro capitulo. Gostei que o enredo foi bem mais simples e direto em comparação à cena de ação do primeiro capítulo.


Críticas:

  • Eu achei o final um pouco repentino. Acho que poderia ter tido alguma seção a mais entre a saída da sala do velho e o final do texto. Eu gostei do décimo primeiro andar ter sido introduzido, atiçando a curiosidade, e já ter sido retomado em um curto espaço de tempo, e entendo o "gag" que tu fez com os eventos acontecendo fora de cena. Mas acho que levou o texto pra um rítmo muito mais acelerado do que tinha sido estabelecido até então, dando uma impressão meio brusca.

  • A pontuação me incomoda um pouco, principalmente a inconsistência nos pontos finais nas partes de diálogo. Por exemplo:
    Zé Joelho escreveu:- Décimo primeiro andar – Tartius respondeu.
    Zé Joelho escreveu:- Interessante autoestima e humor. – Tartius soltou

  • Tinha algumas repetições em proximidade de frases com estrutura mais diferente ou semelhante à linguagem verbal. Esses dois exemplos estavam em parágrafos consecutivos:
    Zé Joelho escreveu:Veja, de alguma forma os agentes ainda respondem
    Zé Joelho escreveu:Veja, Hec-Adalpon é da família mais rica de Allovíz

    Esses dois tambem:
    Zé Joelho escreveu:sim, era para ser uma prisão comum
    Zé Joelho escreveu:Sim, algumas pessoas conseguem se comportar tão mal


Minha parte preferida do texto(eu consegui enxergar isso claramente):
Zé Joelho escreveu:Hec-Adalpon virou-se e ficou virado para a parede ao lado da janela, encarando a parede com a convicção de quem olhava o horizonte ensolarado. E ele pensava que era isso que encarava de fato:

Quero ler mais! E copiando o @Thear, tambem me deixou com vontade de escrever mais. Valeu, Zé!
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