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Caixinha do Zé

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Mensagem por Zé Joelho Seg 07 Mar 2016, 22:31

Estou me propondo um desafio para exercitar qualquer resquício de escritor que ainda há em mim, em meio a bagunça de não ter uma rotina definida. Com vocês a "Caixinha do Zé".

Aqui o tema é livre. Postarei textos de minha autoria no formato e tema que me vierem na telha do joelho.

Todos estão livres para comentar e compartilhar leituras, complementos ou sentimentos.


Um grande beijo no joelho.
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Mensagem por Zé Joelho Seg 07 Mar 2016, 22:34

Via



"Hoje era mais um dia dele
Entre as paredes brancas e panos apertados que o apresentavam como alguém
Esticava sua coluna barulhenta sob a cadeira tão ruidosa quanto. A xícara ao lado da tela estava meio vazia. Assim ele a via.

Meio cheio era o lugar. Tinha gente, tinha muita gente. O que importava? Estava feliz. Recebera um aumento, poderia comprar aquela coisa daquele ano, porque a sua era feia e a da massa vinha com a massa, por mais que apenas em alguns minutos. Assim ele a via.

Faltavam centenas de linhas fraseadas sem amor para que seu cartão batesse com o acesso a sua casa. Faltavam apenas algumas horas, dava tempo. As chaves daquele sofá com aquela tela engraçada estavam ali no bolso, no direito do peito. Tinha alguém esperando por ele , pensava. O amava. Assim ele a via.

A porta com vigia abria a suas costas. Incomum, muito incomum. Era uma criança. Desastrada, boba e chateada. Era como ele a via. Os olhos secos , lindos, imploravam por ele. A cadeira rangeu e virou-se para encarar tal pestinha. Olho-a nos olhos, sentiu cheiro de bolinho de chuva, calor de cama em dia de frio, ouviu sapos e sonhos mudos. A criança estava perdida. Era assim que ele a via.

O tempo, por um instante de si, olhou para ambos. O tempo esperou por ele. Ainda sem glória ele levantou. O tempo arregalou-se, admirou-se. A barba do homem era mal feita. Ele tinha olheiras, pesadas e cansadas de si mesmo. A criança segurava uma folha borrada de cores. Borrada, era assim que ele a via.

Suas pernas não moveram. Bambas, tremulas e fracas estavam. A respiração dele era dificultosa. O tempo era curto e olhava para ele, com o olhar de criança. O homem , por sua vez , perdeu-se. A criança não mais havia. Sentou-se e digitou algo, assinou outro papel e pegou sua bolsa de ‘nadas’.  Assim ele não a via.

Entre as paredes brancas e panos soltos, deitava-se. O amor que o aguardaria, não mais havia, nunca houve. Só ele. Pelo menos era o que se lembrava, além daquela conta num cartão de tarja preta, como o que tomava com a xícara meio vazia, e as despesas dos panos que o apertavam. Nada acontecia naquele dia. Mas era o dia dele. A placa de “o cara” do mês era com o rosto feliz dele. Decidiu colocar tal placa em algum lugar para lembrar. Procurou um lugar em sua parede e encontrou um quadro, meio borrado. Tinha uma assinatura familiar. Iniciais parecidas com... não, ele achava que não. Eram suas cores preferidas , mas estavam lá e ele não lembrava ao certo porque. Ele até gostava do quadro. Moldura antiga, tinta velha, retrato de jovem. Pintura essa que assimilava-se com fotos que em um natal revira com pessoas que diziam-se primas ou irmãs suas, enquanto comia e pensava no que iria fazer nas próximas férias.  Assim ele a via.

A placa está melhor. Significa avanço! Está crescendo em algum lugar. Quem sabe um dia ele fique feliz com o resultado, com tudo. O quadro? Que quadro? Não o via, nada.

Sentou-se no sofá de couro desconfortável por sua condição e ligou a TV. Os panos iriam encarecer, então teria que digitar mais. Tudo bem. O que era ele não mais havia."


Última edição por Zé Joelho em Ter 08 Mar 2016, 23:23, editado 1 vez(es) (Motivo da edição : Formatação)
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Mensagem por Tarin Ter 08 Mar 2016, 22:41

O texto tem um estilo artístico bem marcante, me lembra... algum autor consagrado da literatura brasileira, não lembro exatamente qual, sou terrível em história literária.

O que eu interpretei do texto foi que ele descreve um personagem genérico, morto emocionalmente, passando pelas ações cotidianas enquanto pequenas centelhas de emoção surgem, como lembretes de humanidade que ele não consegue segurar antes que sumam. O foco da narrativa na percepção grosseira e simplista do personagem é um toque interessante, mostrando as coisas do jeito que ele "vê" e "não vê".

Gostei do texto, estou curioso pra ver o que mais sai dessa caixinha. ^^
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Mensagem por Zé Joelho Ter 08 Mar 2016, 23:16

O legal de se criar uma caixinha aberta assim é exatamente encontrar interpretações como as suas, Levi. A interpretação faz a obra, assim como o autor.

Esse texto fora escrito a pelo menos um ano e já recebi diversas visões sobre: Desespero, desesperança, centelha de esperança e "Quadro Sobre Si". Todas me emocionaram. Todas as respostas que recebi foram de um carinho, por mais que a mensagem principal do texto seja, de certo, um pouco pessimista.

Muito obrigado por partilhar sua visão sobre "esta visão". Assim a caixinha só fica mais bonita.

Beijo no Joelho o/
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Mensagem por Zé Joelho Seg 14 Mar 2016, 10:10

Doa


O olhar perdido na lama escura que piscava em nos raios da tempestade levantou-se apontando para o horizonte montanhoso escuro e morto. O homem não estava em si, mas lá estava. A sua volta outros amedrontados, cansados e sem esperança, assim como ele. Couraças de couro e metal liso sem brilho e cheio de aberturas simulavam proteção. A lança de madeira velha com a ferrugem na ponta demonstravam as riquezas e ideologias de seu Senhor, que aliás, pensou ele, nunca viu. O vento lhe deu calafrios ao corpo já quase sem vida e sujo. Seu nome era Doa, o mesmo com os cabelos levemente grisalho e corpo pequeno e magro trabalhava a tempos atrás.

O enorme exército que lembrava um formigueiro inquieto avançava no horizonte em sua direção. Não tinha medo deles, tinha medo de acabar ali. Suas lembranças o assombram como ensinamentos dos sábios. Perdeu seus amigos para o Rei, perdeu sua comida para o Rei, perdeu sua fé para todos. Sua casa fora incendiada e sua mulher o abandonara após a morte de seu filho. A morte marchava pisando forte, em olhares tão indecisos quanto os dele. O que esses homens estariam pensando? Estariam pensando nas mesmas coisas que ele? Teria alguém em situação pior? Não importava, no fundo, a existência. Importava o que não fizera e o que sofrera.

Seu Rei ordenou, com a autoridade dos anjos celestiais, que morressem por ele. Ninguém acredita em anjos quando o brilho do ouro chama o brilho dos olhos. Não só do ouro, para ele era a fome que, não brilhava, mas o fazia mover-se contra o caos. A tempestade marcava o compasso da inquietude de seu peito enquanto os tambores de seus compatriotas, que eram tão estranhos a ele quanto os que desciam o horizonte, acordavam os músculos de suas costas de colhedor de cenouras e pernas de comedor de alface. A água da chuva sobrepujava às lágrimas de todos. Quantos eram filhos? Quantos eram pais? Quantos ainda podiam dizer que possuíam algo?

A voz distorcida pelo megafone de mão que usava de cima de seu rhinter de guerra atravessava os capacetes e as almas dos homens. O general queria sangue de Rellet, queria sangue como o dele. A massa se sacudia de ansiedade e de incerteza.  As tropas se igualavam em número e em doentia, em pressa. Os inimigos param e mostram suas armas. Os aliados preparam suas. Um instante de silêncio ecoa por todo campo. Milhões de olhos podiam ser vistos, mais que armas. Era o fim de uma vida sem glórias ou amor. Era o fim de um brilho sem luz.

Um homem de roupas negras e manto cinza - que lhe cobria a cabeça até a grama- abriu caminho entre os homens magros e trêmulos da linha de frente. Seu rosto era intangível pela máscara de prata com aspecto demoníaco e seu peitoral era coberto por fios negros da camisa de linho de algum clã nobre. Sua calça de material negro estranho cobria metade da altura de um homem do tamanho de outros dois. O mesmo apontou para o general que antes berrava para as tropas do homem lanceiro e os trovões voltaram a toar o céu e seu cinza, calando até mesmo o mais íntimo medo dos homens.

Após alguns momentos de desentendimento geral, Doa notou uma fumaça exalada da ponta do dedo do gigante mascarado e logo após disso uma grande movimentação às suas costas se incitou. Olhou para trás e seu general estava no chão degolado e o rhinter sem uma de suas seis patas aos gritos bestiais de dor. Sem comando o exército começou a se espalhar de pavor ao passo que os homens das montanhas agora avançavam confiantes e com sede de sangue quitador.

Doa apenas conseguia permanecer ali, olhando para o mascarado que parecia encara-lo de volta enquanto seus homens o evitavam e corriam ao combate. Não demorou para que chegassem até Doa e arriscassem um golpe matador. Na tentativa de fugir, o garoto fazendeiro grisalho escorrega na lama pintada de sangue de seus companheiros que morriam ao seu redor e acaba prendendo a lança no chão. Foi o suficiente para o despreparado errante se atrapalhasse e se perfurasse com a lança peito adentro. A ponta da lança quebrara e os fragmentos enferrujados podiam ser vistos no peito quase negro de sangue e poeira que pintara pontos alaranjados e marrons. As lágrimas do homem perfurado corriam seu rosto decepcionam-se ao perder uma chance de liberdade.

No horizonte continuava a aparecer mais e mais hordas de inimigos e que agora traziam enormes tranteros , maiores que a casa de Doa e que as mandíbulas já eram maior que seu corpo por si só. Aves de quatro asas se misturavam com uma nave ao fundo. O grisalho então tentou se esconder de baixo do cadáver que jazia em pé apoiado na lança. Não se importou com o sangue do morto que corria de seu peito até a cabeça grisalha e misturava-se com as lágrimas de horror e arrependimento.

Em mais um momento de silêncio a tropa inimiga recua. Doa olhava apenas para o resto de seus companheiros que eram milhares e agora lembrava um punhado de cartas que nunca foram lembradas. Eles corriam para longe dele, todos olhando para algo. Tudo escureceu e repentinamente clareou numa explosão azulada com baralho de trovão que dilacerou os corpos dos menos ligeiros e jogou o resto, assim como Doa, para cima e para longe. Não sentia seu corpo, apenas formigava, percebeu apenas que estava voando com o corpo falecido do homem que uma hora estava em sua lança. Viu o Sol se pondo. Lindo. Aceitou a morte.

A morte não o aceitou. Nem a morte parece o aceitar, lhe dar a última alface. Em um piscar de olhos acordou. O braço estava retorcido com ossos em migalhas. O sol nascia na outra face, estava no alto de alguma montanha. Apoiou-se no braço que restara e olhou para sua direita vendo o que antes era o campo de batalha longe lá embaixo e agora eram apenas sangue e corpos retorcidos e dilacerados. Não sabia quanto tempo havia passado. Um senhor passava com uma caminhonete cheia de galinhas logo na estrada abaixo do campo de batalha e muito abaixo de onde ele estava. Doa tentou gritar e desequilibrou, caindo montanha abaixo juntamente com o morto. A morte parecia brincar com ele.

Já sentia dor antes, logo tal queda seguida de rolamentos e cascalhos não foi muito sentida. A dor que sentia na alma por ter desejado a morte doía mais. Tentava gritar e nenhuma voz saia, mas o barulho da caminhonete parando a sua frente o tirara do transe de autoflagelação. Um senhor gordo de barbas longas e óculos redondos, trajado com roupas grandes de lã e calças surradas e amareladas, saiu do metal e abaixou para vê-lo. Seus olhos azulados pela idade compreenderam a falta de realidade nos olhos de Doa. O levou até a caminhonete onde o silêncio retornou estremecendo o corpo fadigado do grisalho que tinha o olhar perdido no mar deitado em que o sol se erguia, evitando o oceano vermelho ficando para trás e o corpo cinza, que sua lança mortificou, virar mato.

Estava vivo e isso o amedrontava. Mais um dia vivendo como Doa. Dormira novamente.
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Mensagem por Thear Seg 14 Mar 2016, 18:33

Me faz querer saber mais sobre o contexto disso tudo. Gostei.

Mas acho que talvez tenha faltado revisão, não? As vezes parecem faltar ou sobrar palavras.
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Mensagem por Zé Joelho Seg 14 Mar 2016, 18:53

Hum... Fiz uma revisão rápida para botar o itálico e corrigir nomes.

Dê-me exemplos por Privado que sobras e excessos no texto, por favor.

Se eu me animar, farei disso uma série.
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Mensagem por Zé Joelho Qui 19 maio 2016, 16:48

As Serpentes



Alberto Medeiros trabalha pacificamente em seu escritório. Movimento comum para uma segunda-feira. Suas preces matinais mencionavam algo sobre a volta de Jesus e um carro zero. Ele mesmo pensava que era como a mega-sena; se não jogasse, não ganharia.

Bebeu seu café preto, sem açúcar, e admirava a janela que dava para rua. Imaginava-se então em seu carro novo, prata e com bancos de couro, óculos escuros e sua falecida mãe no carona. No sonho Jesus estava nos bancos de trás. Mal sabia ele que Jesus estava na calçada da mesma rua travestido de mendicante. Do que vale a mega-sena se não conferes o bilhete?

Lembrou-se que estava no trabalho e não na missa de domingo e voltou a ação repetitiva e recompensadora: Analisar os documentos de seguros. Os mesmos que não asseguraram a saúde de sua progenitora, mas esse ressentimento foi resolvido em uma confissão e algumas “ave-marias”.

Abriu a porta para passar pelo RH e demorou para notar a falta de som. Fechou a porta à suas costas e caminhou dois passos até esbarrar na cadeira de metal. Quando olhou em sua volta notou que esta sala ele nunca tinha entrado e não teria como atravessa-la; era uma sala sem janelas e apenas um porta.

“Tudo bem, acho que me perdi.” Pensou enquanto dava meia-volta para sair da caixa. Ao abrir a porta uma surpresa maior ainda: Uma parede. Olhou para trás para ver se havia alguma câmera ou pessoa nem que escondida meticulosamente para entregar a brincadeira saudável de algum programa de TV ou reunião de amigos. Não havia ninguém naquela grande caixa. Apenas uma mesa de ferro e uma cadeira para se sentar.

Antes que pudesse pensar em surtar ou imaginar que tipo de drogas estão utilizando no café para fazer uma reclamação formal, o som de cobras vibrou em sua cabeça. Não havia direção ou origem dentro da sala, por isso era deveras difícil fazer um movimento que não lhe custasse a vida ou sua imagem de homem destemido. O barulho cessou. A coragem de mover-se ressurgira.

Afrouxou a gravata um pouco. Não para respirar melhor ou sentir-se menos sufocado; o suor tinha que escorrer e rápido até seus pés, caso contrário seu pescoço e cabeça alagariam. Olhou por debaixo da mesa, mexeu na cadeira, coçou a cabeça e, mais uma vez, olhou a porta que abria para a parede. Decidiu sentar. O barulho de cobras voltou e dessa vez um pouco mais alto o que fez Alberto pular na cadeira de ferro e olhar para trás. No meio das cobras palavras se formaram e Alberto olhara para a figura que surgira do outro lado da mesa: Uma figura de manto negro, sem rosto e com uma foice:

- Senhor Álvaro Muller, desculpe o atraso, estava resolvendo uma disputa médica. As vezes vocês não sabem quando deixar ir, se é que me entende. – uma risada de apenas uma sílaba soluçou a figura – Vamos ver aqui, o senhor tem 89 anos e quer paz e...
- Er... – Alberto interrompeu bem baixinho – Na verdade... Não
- Espere, o senhor não tem 89 anos.
- Não que eu lembre, tenho 25 anos.
- Isso são...

A figura passou um tempo murmurando algo bem baixinho. Alberto se inclinou querendo ouvir e logo percebeu que estava fazendo as contas, a tal figura:
- São 64 anos de diferença
- Sim, 64 anos.
- E meu nome é Alberto. Alberto Medeiros.
- Não é o Sr. Muller?
- Não desconfio quem é.
- Caramba... Deve – A figura se enrolava em suas próprias explicações – Devem ter sido as iniciais... Vem cá, você quer morrer?
- O quê?
- Vou pegar a sua pasta senhor... Medeiros, correto?
- Talvez.
- Como assim talvez? É teu nome ou não?
- Depende. Você é a morte?
- Que? Ah... – A figura olhou para suas roupas – Isso aqui era pro Muller. Clássico de velho.

No mesmo instante a figura alterou-se para um homem de terno preto, camisa vinho e uma gravata borboleta preta com um celular em mãos:
- Só um minuto que essa droga trava muito, sim? – O Homem mexia avidamente no celular
- Eu realmente tenho que voltar para o trabalho, senhor...? – Alberto olhou o relógio e depois nos olhos de tal figura
- O tempo está parado, pode ficar relaxado. E parece que o tempo parou para essa droga também.
- Como me dirijo ao senhor? Tem um nome?
- Todos temos nomes, sr. Medeiros. – antes que Alberto retrucasse O Homem o interrompeu – Aqui! Achei sua pasta, senhor Alberto Medeiros. Católico jovem. Já brigou com o Pai. Já fez as pazes com o Pai. Já cobiçou a mulher do próximo, comete o pecado da gula toda vez que vai a um fast food, já questionou a autoridade do Todo poderoso... Todos fazem isso, eu inclusive, então relaxe...- Disse para Alberto e voltou ao telefone - E já tentou cometer um pecado imperdoável. Ainda quer morrer?

Alberto havia congelado em apenas uma expressão de extrema dúvida. Voltando do transe piscando veementemente e gaguejando, tentava por ordem em todas aquelas informações e novas suposições sobre o café da empresa. Dona Rosa devia estar tramando pois todos esquecem que não se deve jogar líquidos no lixo.
- Calma aí. Como... Como sabe disso tudo? E eu fui criado sem pai, apenas por minha mãe e avós.
- Eu sei.
- Como sabe?! E que pai é...
- Você sabe, o Pai de todos. Deus.
- Você... Você é um anjo?
- Tipo isso.
- Cadê as asas? Trombetas douradas? Pera... – Um pavor floresceu no rosto de Alberto – Eu morri? E por que eu vim parar na sala do RH? – Interrompeu sua frase no meio – Ok, isso até faz sentido...
- É tudo formalidade pra ficar bonitinho. Eu errei de cliente então meio que tudo que você vê está em estado “neutro”. Eu por exemplo estava vestido como “Morte” pois era o que Muller imaginava que seria. Formalidade.

Alberto abriu a boca, mas nada saíra. Recostou-se na cadeira de ferro e olhou mais uma vez para O Homem. Seus olhos procuravam as respostas no chão e na parede de trás. Decidiu ter mais informações:
- Ok, você viu meus pecados em um celular?
- Todos têm que modernizar-se, Medeiros.
- Mas eu não cobicei a mulher de ninguém.
- Réveillon passado, Rita. E toda vez que vê “Amor e Sexo”. Esquent...
- Ok! Ok! Não sabia que era tão rígido...
- Sabia sim. Você tinha confessado alguns e, inclusive, não pagou penitência.
- E a comida? Eu tava com fome! Não é pecado matar a fome!
- Precisava adicionar queijo, bacon e cream cheese? – O Homem esperou uma resposta que não veio – Hãn? Também acho que não.
- Eu devo me confessar a você? Qual anjo é você?

O Homem riu e levantou uma bolsa do chão que até então passara despercebida por Alberto simplesmente porque a alguns instantes não existia. Vasculhou em busca de algo e tirou uma papelada, caneta e um gravador.
- Conhece John Milton?
- “O Paraíso Perdido”, sim. Por quê?
- Então sabe quem sou.
Alberto saltou da cadeira e agora tentava conter todo o medo e espanto o máximo possível.
- Quer algo para beber? Eu quero conversar um pouco. – O Homem bebia água sem gás.

Após algumas respiradas mais fundas e goles de vinho fornecido por O Homem, Alberto retirara seu paletó e o repousara na cadeira. Retirou a gravata e a deixou em cima da mesa.
- Então John Milton está correto?
- Em partes, sim. Meio que ele acabou fazendo ser real. É complicado.
- Lúcifer?
- Eu.
- Estrela da Manhã?
- Eu.
- Você é o mal...
- Mais para uma “segunda opinião”, mas tudo bem.
- Você gosta de rock?
- Detesto Beatles, mas costumo ser eclético. Já ouviu Tom Zé?
- Não.

Lúcifer, olhou para cima e para o relógio que materializou-se em seu pulso. Retirou a gravata borboleta.
- Alberto, você não é Muller, mas já viveu o bastante para pecar. E você já quis morrer antes. Quer morrer agora?
- Não... Eu não quero morrer.
- Aqui diz que um ano atrás você tentou suicídio após a morte de sua mãe. Papai não gostou nem um pouco.
- Olha, o que me impede de chamar Deus e te afastar de mim?

Lúcifer olhava impassível para Alberto. Ajeitou seu terno e inclinou-se um pouco por cima da mesa e, após limpar a garganta, perguntou:
- Por que ainda não chamou por seu Pai ao conhecer o Diabo?

Alberto engoliu a seco e desviou o olhar, agora para a mesa. Lúcifer voltou a encostar na cadeira e, apoiando-se em um dos braços, continuou:
- Tem medo de sua face ao deparar-se com um descrente?
- Eu acredito Nele. – Alberto voltou a olhar para Lúcifer
- Eu também. Temos coisas em comum, não?
- Pare com isso. – Alberto olhou em volta – Por que me manter aqui? O que quer de mim?

Lúcifer limpou uma maçã na camisa e comeu um pedaço:
- Quero saber mais... – Outra mordida –... de você.
- Fala logo o que quer.

Lúcifer ajeitou os papéis e a caneta e se pôs em posição mais formal. Limpou a garganta e começou:
- Eu tenho um acordo para você. Se você aceitar responder algumas perguntas minhas eu lhe asseguro que sua mãe saia do purgatório e ainda ganhará o tal carro. Quanto a Jesus nada posso fazer, ele não tá afim de descer...
- Pera aí! Minha mãe está no purgatório? Minha mãe era uma santa! Como ela foi parar lá?
- A Santa de Santana Chorou sangue, mas era tinta vermelha.
- Você mente!
- Muito... Posso continuar? – Lúcifer voltou aos papéis – Se você não quiser participar da entrevista poderá sofrer um acidente de trabalho. E o mais importante: Se você mentir, eu saberei.
- Isso não é justo... Se eu aceitar, minha mãe que, segundo você, está no purgatório, se salva e se eu negar eu posso morrer. Como posso saber que minha mãe está lá? Como posso saber que vai cumprir com sua parte?
- Aceite o mistério, Medeiros.
- Não acredito... Quer que eu faça um acordo com o Pai da Mentira? Com o Diabo?
- Pode me chamar de Luci, se quiser... Eu até prefiro.
- Não sei se quero ficar íntimo...

Lúcifer ligou o gravador e ajeitou os cabelos. Alberto suava frio, mas nenhuma água saia de seu corpo. Pensava em como Deus iria encarar isso... O que sua mãe iria pensar? “ Um acordo com o Diabo? Sério isso?! “ pensaria ela, “Ficava devendo no Serasa, mas não pro Tinhoso”. O carro não poderia ser comprado devendo ao Serasa, pensou... E achou que acabava de pecar.
- Só para constar que você, Senhor Alberto Medeiros, está totalmente consciente do trato que está acordando comigo, Lúcifer, para reaver sua mãe que está no Inferno e um Gol zerinho. Não exatamente nessa ordem.
- Ela tá no inferno? Puta que pariu!
- Não fale assim da sua santa mãe.
- Você disse purgatório antes.
- Você questiona minha palavra?

Um silêncio fora gravado em áudio como prova do consentimento de Alberto.
- Deixa pra lá. Alberto, você quer ter filhos?
- Sim.
- Você ama o Pai todo Poderoso?
- Sim.
- Você quer morrer?

Outro silêncio mais incômodo fora gravado. Até o gravador parecia suar. Quem lhe julgaria? Ser o testemunho do Diabo tem seu peso moral até para objetos inanimados. Alguns seres vivos não tem senso moral e sorririam nesse momento.
- Não. Não quero morrer.
Lúcifer olhou bem em seus olhos. O barulho de serpente voltou a cabeça de Alberto bem baixinho.
- Por que não? Por que quer viver? – Perguntou Lúcifer
- Eu de fato quero o carro e, no fundo, só quero que Jesus volte pra confirmar algumas coisas pra mim. Ele tomava banho com qual frequência? Hóstia é algo necessário? Não pode ser um brigadeiro? Sou meio egoísta, como pôde ter visto no meu histórico. O mundo ficou muito cinza depois que minha irmã se foi e eu realmente pensei que não era ninguém aos olhos dEle... Você teve seus motivos para fazer o que fez, não? Pois então, eu tive os meus. Deus me deu mais uma chance para lutar de novo e encontrar meu caminho, e eu lutei por esse emprego e...

Após uma longa pausa onde Lúcifer parecia analisar cada palavra de Alberto, coçou o nariz e perguntou:
- Por que quer viver?
- Porque eu não sou um estranho aos olhos Dele. Eu não sou um estranho aos meus olhos também.
- Vocês são uma decepção...- Lúcifer dizia visivelmente contrariado – Eu tentei avisar a ele. Vocês escolheram o mal, eu fui condenado a tal. Vocês mentem, eu apenas ouço suas mentiras.
- Eu estou mentindo?
- Desafias a mim? Senhor do Inferno?

As luzes da sala diminuíram, formando um foco apenas na mesa em que se encontravam:
- Pergunto a um anjo se confia em mim. - Alberto se surpreendia em como falava agora.
- Você não mente Alberto. Sua vida mente para você... e você sabe disso.
- Minha mãe está no céu, correto?
- Você quer que Lúcifer alivie sua consciência?
- Não... – Alberto inclinou-se para frente – Quero que admita que mentiu.
- Eu poderia te levar para o inferno agora, se eu quisesse...

Os dois se encaravam. Lúcifer parecia mortificado, Alberto nervoso.
- Porque não arrastou-me para o inferno quando soube de meus pecados?

Lúcifer guardou seus papéis e desligou o gravador. Ajeitou a gravata borboleta e bateu em sua roupa. Um cheiro de queimado foi mal recebido pelo nariz de Alberto que espirrava. Lúcifer andou até o escuro e parou, virou-se para Alberto.
- Eu espero te encontrar novamente, senhor Medeiros.
- Posso mudar o carro para um Mustang?

Lúcifer riu e ao desaparecer respondeu:
- Reze cinco pai nosso e nove ave marias.

Entre barulhos de cobras Alberto despertou no dia anterior. Era domingo. Levantou da cama e olhou para o céu. Riu para si:
- Dona Rosa, Dona Rosa...


Última edição por Zé Joelho em Seg 23 maio 2016, 11:17, editado 1 vez(es) (Motivo da edição : Lúcifer)
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Mensagem por Thear Sáb 21 maio 2016, 05:17

Bom, isso foi estranho. Divertido, leitura fácil. Não sei se entendi por completo.

Ah, que eu saiba é "estrela da manhã" não "estrela do amanhã".
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Mensagem por Zé Joelho Seg 23 maio 2016, 11:18

Corrigido. Eu sempre ouvi "do Amanhã" hahahahahahah

Também estranhei o texto quando terminei, mas não senti que deveria alterar nada.
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Mensagem por Tarin Seg 23 maio 2016, 21:38

Eu achei o texto bem legal, e passa uma impressão bem diferente, mesmo. Eu acho que tu escreve de um jeito bem natural, passando uma certa aura de confiança, como se tu estivesse convidando o leitor pra entrar no teu mundo único e bizarro pra dar uma olhadinha.

Mas tambem por isso, acaba tendo umas partes um pouco difíceis de entender. O final do texto indica que o Alberto achou que o acontecimento foi um sonho causado por alguma coisa no café, como tinha presumido? E quem é Dona Rosa? Uma empregada da casa dele? E a conclusão de Lucifer foi que o Alberto realmente confiava no caráter da mãe dele, mesmo depois das provocações?

Zé Joelho escreveu:"Dona Rosa devia estar tramando pois todos esquecem que não se deve jogar líquidos no lixo."
Não sei se entendi essa frase. A Dona Rosa teria colocado alguma coisa estranha no café porque as pessoas estavam jogando líquidos no lixo? Como vingança, tipo?

Zé Joelho escreveu:"- Não sei se quero ficar íntimo..."
Achei que essa frase ficou estranha no contexto, um pouco casual demais em comparação com as outras que vieram antes e depois, nas quais ele respondeu bem mais agressivamente à ideia de fazer um pacto com Lúcifer.
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Caixinha do Zé Empty Re: Caixinha do Zé

Mensagem por Zé Joelho Qui 26 maio 2016, 23:09

Eu admito que "Dona Rosa" foi mais uma figura cômica a qual eu quis dar algum peso apenas ao final, mas sem qualquer objetivo claro em mente. Eu tenho uma interpretação de meu próprio texto e, se você quiser, te passo por inbox!! hahaha

Quando a parte de "Não sei se quero ficar mais íntimo..." eu realmente tentei deixar puro e que passasse certa provocação por parte de Alberto, mas pelo visto não deu o resultado esperado ;P

E obrigado pelos comentários o/
Zé Joelho
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