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Alvo na mira

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Mensagem por Lunacharski Ter 25 Set 2018, 18:28

Salve, povo. Um brother meu que faz parte do fórum me falou hoje da existência de um espaço para a postagem de contos, poesias e afins, quando eu lhe mencionei minha intenção de voltar a escrever e que já possuía alguns contos escritos. Mediante incentivo, decidi postar aqui um de meus contos sobre uma franco atiradora soviética na Batalha de Stalingrado, escrito em 2012. Justamente nesta época eu havia me desiludido com experiência soviética, o que explica o tom um tanto exageradamente amargo e trágico (mas real?) com que descrevo a opressão sofrida pela população campesina da URSS. Fiz uma pesquisa rápida para escrever esse conto, assim como me utilizei das leituras já realizadas sobre a URSS na faculdade. Relendo o conto hoje, depois de seis anos, decidi não mudar nada nele, é o mesmo de 2012. Vocês verão que me inspirei - ainda que vagamente - nas histórias reais de snipers como Lyudmila Pavlichenko, Roza Shanina e Vasili Zaitsev, bem como na Casa de Pavlov. Não pensem que estou satisfeito com a minha escrita em 2012: é realmente estranho reler um texto seu que ficou engavetado por seis anos. Porém, preferi manter o original, escrito durante o segundo ano da faculdade de História. Tenho outros contos concluídos, mas preciso localizá-lo no caos do meu HD externo. Se alguém o ler e nele reparar erros históricos e militares, sinta-se a vontade em corrigi-lo (Por exemplo, fiquei na dúvida se eram mesmo os Stukas que atacavam os comboios recém chegados a Stalingrado, mas deu preguiça de pesquisar sobre o tema hahaha). Bem, acho que já escrevi demais, e o conto é longo pra caralho. Um abraço.


Alvo na mira



À medida que o quilométrico comboio formado por tanques T-34, carroças e velhos caminhões de transporte de tropas lentamente se aproximava da calcinada Stalingrado, Yuliya Shodiyeva via se descortinar diante dos seus olhos todo o espetáculo horrendo que a guerra moderna pode proporcionar àqueles que nela se veem envolvidos.

A primeira visão marcante que a jovem uzbeque teve, antes mesmo de começar a ouvir o incessante troar dos canhões que provinha da cidade que ardia em chamas, foi um grupo de prisioneiros alemães que penosamente se arrastavam em direção à retaguarda do Exército Vermelho. Vestidos com trapos que se lhes desmanchavam e caíam do corpo a cada passo que davam em direção ao leste, os outrora arrogantes combatentes do Terceiro Reich eram escoltados por um destacamento de fuzileiros da 13ª Divisão de Guardas de Rifle, cujos membros não perdiam uma única oportunidade sequer de xingar, cuspir ou açoitar brutalmente os seus odiosos cativos.

Shodiyeva, no entanto, não se comovia nem um pouco com o tratamento que os seus companheiros de armas russos – que, aliás, também não lhe eram nada estimados - dispensavam aos brutais lacaios daquele maldito assassino de judeus, ciganos, eslavos e mais uma infinidade de desafortunadas minorias, Adolf Hitler. Enquanto viajava em um vagão atulhado de camaradas de luta que, como ela, se dirigiam a Stalingrado, Yuliya tomara conhecimento dos métodos utilizados pelos nazistas para manter o controle sobre os territórios soviéticos já ocupados: torturas as mais cruéis para a obtenção de segredos militares, execuções sumárias de comissários políticos e partisans e, para finalizar, tratamento desumano a toda população eslava – os Untermenschen – que ficavam sob controle da impiedosa SS nazista.

Porém, Shodiyeva nem sempre fora antipática aos alemães de Hitler e seus aliados do Eixo. Antes, por mais surpreendente que isso possa parecer, ela os via como prováveis libertadores das minorias étnicas que há décadas eram esmagadas pela mão de ferro do regime soviético.

Nascida em uma insignificante aldeia pastoril do interior da República Socialista Soviética do Uzbequistão, caçula de uma família formada por seis filhos homens ainda vivos, Yuliya Shodiyeva teve toda a sua curta existência - contava vinte anos no ano de 1942 - afetada pelo autoritarismo russificante com que o regime stalinista oprimia as minorias étnicas que "voluntariamente" faziam parte da União das Repúblicas Socialista Soviéticas.

Quando Shodiyeva tinha apenas quatro anos de idade, o seu velho avô, um relativamente próspero agricultor que era adorado por todos os seus empregados, amigos e parentes, havia se recusado a ceder suas terras ao sistema de fazendas coletivas - os Kolkhozes - preconizado pelas eminentes autoridades do Partido Comunista da União Soviética. Estrepitosamente acusado como "inimigo do povo", “kulak” e "agente das potências capitalistas ocidentais", o velho Shodiyev fora sumariamente condenado à morte por um tribunal improvisado, que por mera "coincidência", era formado por todos aqueles agricultores que invejavam a prosperidade do velho produtor rural uzbeque.

Cinco anos depois, o irmão mais velho de Yuliya, Kóstia, foi preso pela OGPU sob acusação de tentativa de subversão do regime soviético e conspiração pequeno-burguesa (na verdade, o que realmente ocorrera foi que o jovem Kóstia, ainda inconformado com a execução do avô,  externara todo o seu desagrado em relação à política rural soviética durante uma aula de filosofia da escola onde estudava. Erro dos erros). Juntamente com mais uma dúzia de seus colegas de classe que compartilhavam de suas opiniões, Kóstia - após brutal interrogatório na sede da OGPU local - foi enviado para o imenso sistema de campos de trabalho forçado na gélida Sibéria - o gulag stalinista. Ninguém da família Shodiyev teve a oportunidade de se despedir de Kóstia antes de sua partida para a Sibéria. E nunca mais voltariam a vê-lo, pois o jovem morreu de tifo ainda no meio da viagem para o norte, em um vagão de trem escuro, apertado e infestado de pulgas.

Diante da repentina perda do filho mais velho, a senhora Shodiyeva caiu de cama, e, após três meses de crescente prostração física, veio a falecer em uma fria madrugada do inverno das planícies da Ásia Central. E, para completar as tragédias da desafortunada família camponesa uzbeque, a senhora Shodiyeva, quatro meses antes do seu falecimento, havia dado à luz a mais um filho, Alieksei. No entanto, semanas após a morte da mãe, o pequeno Alieksei, sem ter quem o amamentasse e acalentasse durante o rigoroso inverno uzbeque, sucumbiu diante de uma forte pneumonia, contabilizando a quarta morte da família Shodiyev direta ou indiretamente causada pelo autoritarismo do infame regime socialista soviético.

A todas essas tragédias a pequena Yuliya assistia impotente, ao mesmo tempo em que nutria em seu coração um ódio incomensurável à Stálin e a todos os burocratas que eram responsáveis pelo funcionamento daquela máquina de moer carne que era a URSS.

Os anos foram se passando, duros e repetitivos, e Yuliya Shodiyeva foi crescendo e se desenvolvendo, quase todo esse processo ocorrendo na pequena propriedade rural do velho Shodiyev, que conseguira - à muito custo - manter suas terras sem que essas fossem incorporadas ao kolkhoz, mas que devia remeter noventa por cento da sua produção de cereais e algodão ao soviete local. Yuliya, juntamente com os seus seis irmãos mais velhos, diariamente pastoreava e, às vezes, tosquiava e ordenhava os rebanhos do pai; cultivava e colhia os parcos cereais e o algodão da propriedade da família e, como única filha mulher entre os sete irmãos Shodiyev, realizava, quando lhe era possível, os diversos afazeres que impunha ao seu gênero a cultura tradicionalista uzbeque: cozinhar, lavar roupas, costurar, organizar e limpar a velha choupana dos Shodiyev, etc.

Apesar da existência dura e fatigante do campo, Yuliya encontrava tempo para se dedicar ao divertimento que era a única fonte de alegria e descontração da sua vida: a caça. Diariamente, junto com dois de seus irmãos, Igor e Mikhail, Yuliya, esquecendo-se de todo o cansaço que o dia de trabalho no campo impusera ao seu esguio corpo de adolescente, saía às tardinhas para caçar cisnes, gansos, cervídeos, lebres e coelhos selvagens. Os três irmãos caçadores possuíam apenas um velho rifle de um modelo remanescente da Guerra Russo-Japonesa e escassa munição para cada noite de caçada, o que os obrigava a buscar uma média excepcionalmente boa de tiros bem-sucedidos.

A princípio, Yuliya apenas observava os irmãos - principalmente Igor, dotado de uma pontaria primorosa - em ação, mas, passados alguns meses, a garota começou a dar os seus primeiros tiros e, depois de três ou quatro anos de caçadas diárias, ultrapassou em muito os seus irmãos na eficiência dos seus disparos. Havia noites em que Yuliya não desperdiçava uma bala sequer, cabendo aos seus dois irmãos - nem de perto tão bem sucedidos quanto a caçula - carregar as peças de caça abatidas pelo talento descomunal da irmã. Quando Yuliya completou dezoito anos, em 1940, sua fama de atiradora infalível se espalhara por todo o norte do Uzbequistão (era a primeira vez que o povo daquela região ouvia falar de uma mulher que atirava com uma precisão tão assombrosa). Yuliya se tornara como que uma celebridade da região agrícola uzbeque, vencendo todos os concursos de tiro de que participava.

Entrementes, aqueles eram anos de guerra, guerra mundial. A URSS havia assinado um infame pacto de não-agressão com a Alemanha de Hitler em 1939, o que a poupou da matança irracional mundial por dois anos. Mas em 1941 a avalanche da blitzkrieg caiu com força total sobre a militarmente despreparada república socialista soviética do "pai e timoneiro" Stálin.

Durante os anos de guerra, a repressão às minorias étnicas perpetradas pelos burocratas do Kremlin diminuiu consideravelmente, em virtude da necessidade da união de forças de todas as repúblicas soviéticas contra a terrível ameaça nazista. Mas, mesmo com esse "arrefecimento de guerra", Yuliya não mudara em nada a sua opinião em relação ao regime dos sovietes: odiava-o de corpo e alma. Na verdade, além de todos os familiares que perdera em fins dos anos 20, Yuliya ainda vira muitos dos seus amigos de adolescência - inclusive um garoto de 23 anos por quem estava apaixonada - serem mortos, presos, torturados ou deportados apenas pelo fato de terem feito comentários "anti-soviéticos" na presença de agentes infiltrados da NKVD.
Portanto, quando da invasão nazista à URSS, em junho de 1941, Yuliya Shodiyeva, que nada conhecia das ideias megalomaníacas e genocidas de Adolf Hitler, via nos nazistas a única esperança de libertação dos povos que por décadas eram oprimidos pelo jugo soviético.

Mas eis que em uma ensolarada manhã de maio de 1942, os comissários políticos de recrutamento do Exército Vermelho surgem na aldeia onde residiam os Shodiyev e obrigam todos os jovens maiores de dezoito anos a se alistarem no exército que travava a Grande Guerra Patriótica. Todos os seis filhos de Shodiyev foram imediatamente alistados e enviados para os campos de treinamento militar nas proximidades de Moscou. No entanto, no último dia do recrutamento na aldeia do norte uzbeque, um dos comissários políticos se dirigiu à residência dos Shodiyev e exigiu uma audiência particular com Yuliya Shodiyeva.

O comissário disse a Shodiyeva que tomara conhecimento do seu descomunal talento para o tiro e que a União Soviética necessitava urgentemente dos seus serviços para efetuar a expulsão do inimigo nazista do sagrado solo pátrio.

- A UNIÃO SOVIÉTICA PRECISA DE MIM?! - gritou Yuliya, tomada de ira, sentindo-se ainda mais colérica por lembrar que os seus queridos irmãos haviam partido dias antes para aquela maldita guerra que certamente só traria mais dor e sofrimento à sua família. - A UNIÃO SOVIÉTICA, STÁLIN, O PARTIDO... TUDO O QUE ELES FIZERAM FOI MATAR AS PESSOAS QUE EU AMAVA!

O comissário, espantado com aquela reação de fúria da jovem uzbeque, poderia muito bem a ter mandado imediatamente para o gulag, mas, estando ele ciente da carência que o Exército Vermelho sofria de bons atiradores para a encarniçada batalha urbana que se desenrolava em Stalingrado, respondeu com um sorriso malévolo:

- Seria uma pena se o velho senhor Shodiyev, que, se eu não me engano, possui mais de oitenta anos, fosse parar em um campo de trabalhados forçados na Sibéria apenas por que a sua filha caçula se negou a cumprir o seu dever para com a nossa sagrada mãe União Soviética...  
               
                                             * * *

Logo em seguida aos prisioneiros maltrapilhos alemães que caminhavam para a retaguarda de seus captores rumo a um destino que muito provavelmente seria a morte, Yuliya, de cima de um caminhão de transporte de tropas repleto de soldados assustados e temerosos por suas próprias vidas, avistou alguns de seus compatriotas feridos sendo tratados na beira da estrada, a céu aberto.

- Vocês trazem os seus feridos para serem tratados aqui na retaguarda? - gritou espantado um velho mujique uzbeque que se encontrava no mesmo caminhão em que ia Yuliya. - Não é de admirar que nenhum deles sobreviva ao tratamento médico!

- Esses aqui não foram feridos na cidade - gritou um gordo soldado russo que montava guarda próximo aos feridos e aos médicos aparvalhados. - Isso - disse o guarda apontando para um soldado que estava tendo uma de suas pernas amputadas naquele exato momento - é obra dos Stukas.

- Stukas?! - redarguiu o velho mujique, coçando a cabeça.

- Bombardeiros de mergulho dos chucrutes - respondeu um outro guarda russo, companheiro do gordo. - Eles sempre atacam os comboios de recém-chegados com uma boa chuva de aço. É bem provável que muitos de vocês, uzbequizinhos de merda, estejam ainda esta noite aqui neste posto médico, cuspindo sangue enquanto tentam remover um pedaço de metal de duzentos gramas das suas bundas fedorentas - acrescentou o guarda, com uma gargalhada maldosa.

Sem prestar a menor atenção a essa conversa, Yuliya fitava em silêncio os moribundos que gritavam e se debatiam sobre as suas padiolas cujo tecido se encontrava encharcado de sangue escuro. Aquela cena aumentara ainda mais o ódio de Yuliya Shodiyeva, pois, durante o curto e ineficiente treinamento militar pelo qual passara em uma região próxima aos Urais, a jovem – que até aquele momento nada entendia de guerra – percebera que a infantaria do Exército Vermelho era quase que exclusivamente formada por aqueles camponeses simplórios que, assim como ela, não desejavam nem compreendiam o sentido daquela guerra contra os alemães, ao passo que os altos postos de comando, onde nenhum marechal ou general corria qualquer risco de vida, eram ocupados por aqueles homens que nos últimos anos haviam coordenado a repressão às minorias étnicas em toda a URSS.

Equipada com um rifle não muito diferente daquele que utilizava nas caçadas, algumas granadas e uma velha baioneta enferrujada, e vestindo uma larga farda verde que lhe havia sido dada no final do treinamento para recrutas, Yuliya fazia parte do grupo de uzbeques que “voluntariamente” haviam se alistado para recompor a desfalcada 13ª Divisão de Guardas de Rifle, que há semanas combatia ferozmente entre os escombros de Stalingrado.

Diferentemente da quase totalidade dos seus companheiros uzbeques, Shodiyeva não sentia nenhum medo da morte, esta que estava reservada para mais de noventa por cento dos combatentes que adentravam no perímetro de combate de Stalingrado. A única coisa que afligia a jovem e corajosa camponesa da Ásia Central era que ela estaria lutando pelo lado dos assassinos dos seus familiares, dos seus amigos e de todos aqueles milhares de pessoas que morriam em completo silêncio nos campos de trabalho forçado da Sibéria. Ela seria obrigada a lutar por Stálin e pela odiada “mãe” União Soviética. Mas, afinal, o que poderia ela fazer? Lutar pelos nazistas? Não, isso estava fora de cogitação: os alemães demonstraram ser tão cruéis e sanguinários quanto os altos líderes políticos da URSS. Yuliya Shodiyeva se encontrava entre a cruz e a espada.

                                             * * *

Depois de cruzar os subúrbios leste de Stalingrado, Yuliya e seus camaradas de armas uzbeques foram instalados em um prédio em ruínas que servia de quartel improvisado para as tropas soviéticas recém-chegadas. O general daquele setor da frente de combate, um russo chamado Vassili Kornienko, veio naquela mesma noite dar as boas-vindas aos uzbeques.

- Meus digníssimos camaradas da República Soviética do Uzbequistão! – gritou Kornienko, para que todos no alojamento (um grande salão que outrora era utilizado para a realização de festas e jantares) o ouvissem. – A partir de hoje vocês compõem a 13ª Divisão de Guardas de Rifle, e isso significa que vocês derramarão com o maior orgulho o sangue de suas veias em defesa da mãe União Soviética do nosso grandioso líder Iossif Stálin! Isso está claro para vocês?! – indagou o general, correndo os olhos pelos rostos assustados de seus comandados.

- Sim, senhor! – gritaram os interpelados, sem muita convicção. Kornienko prosseguiu, sem fazer caso da hesitação geral.

- O Alto Comando do Exército Vermelho planejou uma ofensiva geral que terá como objetivo a retomada das indústrias têxteis da região sul de Stalingrado, que nesse momento se encontram nas mãos dos patifes alemães. A ofensiva ocorrerá amanhã e todos vocês tomarão parte nela. Não permitiremos recuo amanhã; o covarde mijão que debandar será sumariamente fuzilado. Um sargento guiará vocês até a zona de combate. Vocês devem obedecer a tudo o que ele ordenar, não importa qual seja a ordem. Em suma, vocês deverão fazer apenas duas coisas amanhã: obedecer a seu superior e matar o máximo de alemães que lhes for possível. Entendido, soldados?

- Sim, senhor! – bradaram maquinalmente os uzbeques, enquanto o ruído das detonações de bombas não cessava nem por um segundo do lado de fora do quartel improvisado.

- Boa sorte para todos nós amanhã! Não tenham piedade do inimigo! Pela mãe União Soviética!

- Pela mãe União Soviética! – repetiu um coro abafado pelas explosões dos obuses que obliteravam Stalingrado de minuto a minuto.

Durante toda a madrugada que se seguiu, Yuliya não dirigiu uma única palavra sequer a ninguém. A jovem permaneceu sentada a um canto escuro do salão, longe dos demais uzbeques, que na sua grande maioria eram homens jovens, embora ali também houvessem algumas corajosas mulheres.
Enquanto limpava com esmero seu rifle – coisa que aprendera no treinamento para recrutas – Yuliya pensava em como seria o dia de amanhã... Matar seres humanos era algo que jamais havia passado pela cabeça da jovem Shodiyeva, mas amanhã ela e todos os uzbeques que com ela partilhavam aquele salão amplo só teriam um único objetivo a perseguir com todas as suas forças: matar, trucidar, sangrar o maior número de alemães que lhes fosse possível. Enquanto visualizava mentalmente o banho de sangue que estava programado para o dia seguinte, uma pergunta intrigante assaltou a simplória mente camponesa de Yuliya: Afinal, por que os humanos têm de guerrear entre si? E uma série de outras perguntas se seguiu à primeira: Qual o motivo desta guerra? Qual o motivo de todas as outras guerras do passado? Não haveria uma solução melhor para os problemas da política das nações do que o derramamento de sangue de milhares e milhões de inocentes? Por que os animais irracionais nunca guerreiam entre si, enquanto os homens, que se julgam civilizados, praticam todas essas crueldades insanas?

E, sem encontrar respostas a estas perguntas, Yuliya, surpreendentemente, caiu em um sono profundo e sem sonhos.

                                               * * *

- Avançar! Avançar! Usem a cobertura oferecida pelos prédios da esquerda! – gritava o sargento Deníssov, um ucraniano durão que comandava o regimento para o qual Shodiyeva fora destacada, para os soldados sob as suas ordens.

A ofensiva começara.

O regimento de Shodiyeva, formado por duzentos homens armados de rifles Mosin Nagant, fora incumbido de tomar uma fábrica têxtil que era guarnecida por aproximadamente cento e cinquenta alemães. No entanto, antes de alcançar o enorme galpão da fábrica, os soviéticos deveriam atravessar a pé uma montanha de escombros que outrora fora um grande bairro residencial e que agora estava repleto de ninhos ocultos de metralhadoras Mg42 alemãs. Apesar da cobertura das granadas de gás, o avanço foi detido logo nos primeiros minutos de ação.

- Não recuem! Não recuem! – gritava Deníssov a plenos pulmões, de trás de um muro tombado. – Por Stálin! Pela União Soviética!

Shodiyeva, aturdida com as metralhas e detonações de obuses e granadas que se ouviam por todos os lados, se espremia contra a reentrância da parede de um prédio parcialmente destruído, certa de que se desse um passo adiante seu corpo seria varado por no mínimo uma dúzia de balas de metralhadora. Foi então que, diante dos seus olhos, um garoto uzbeque que não poderia ter mais de dezessete anos foi atingido no abdômen e tombou na terra ainda úmida pelo orvalho da manhã, enquanto suas vísceras se esparramavam pelo chão. O garoto gritou e se debateu, tentou pôr os seus órgãos internos novamente para dentro do corpo e, minutos depois, seu lancinante sofrimento chegava ao fim.

Nauseada, Yuliya sentiu o vômito subir até a sua garganta, ao mesmo tempo em que observava que mais da metade do seu regimento já havia sido trucidado pelas metralhadoras alemãs. A ofensiva estava se tornando um massacre completamente favorável aos nazistas. Sabendo o que aconteceria se recuasse para as bases da 13ª Divisão e igualmente ciente de que o avanço era simplesmente impossível, Yuliya observou que havia uma porta de madeira na parede às suas costas que dava para o interior do prédio que assomava diante de si. Forçando a porta com a coronha de seu rifle e abrindo-a, Shodiyeva entrou no prédio sem hesitação, fechando em seguida a porta atrás de si.

Após alguns minutos de total silêncio e inatividade física, Yuliya, um pouco recuperada do choque que o banho de sangue lá de fora lhe causara, decidiu explorar o interior daquele velho prédio de três andares prestes a desmoronar. A jovem perambulou por quartos com camas velhas, cozinhas sem qualquer tipo de comida, salas de estar com sofás estropiados, mas, quando estava subindo a escada que dava para o terceiro e último andar, um vulto extremamente rápido lhe tirou o rifle das mãos e uma segunda sombra enorme lhe segurou com extrema força os braços e o pescoço, imobilizando imediatamente todos os movimentos da jovem soldado.

- Hey! Dmitri! Pode largar esse aí! É um dos nossos – falou o sujeito que havia tomado o rifle de Yuliya, com um sorriso trocista.

- Nada disso, Vladmir, meu velho! É UMA das nossas! – exclamou o tal do Dmitri, um homenzarrão forte e careca com um capacete que mal lhe cabia na cabeçorra, soltando Yuliya do seu aperto sufocante.

- Que seja, que seja! É só mais uma covarde que se borrou toda diante dos alemães e correu para o primeiro esconderijo que lhe apareceu na frente – disse Vladmir com desprezo, devolvendo o rifle a Shodiyeva.

- Ah, eu sou covarde, é?! – exclamou Yuliya, ofendida no seu orgulho. – E o que vocês são, escondidos, assim como eu, nesse prédio como se fossem ratazanas imundas? Vocês são tão covardes quanto eu!

- E por acaso dissemos que não somos? – redarguiu Vladmir, virando as costas para Yuliya e subindo calmamente as escadas que conduziam ao terceiro andar.

Yuliya, um tanto hesitante, seguiu os dois soldados escada acima, e quão grande foi a sua surpresa com aquilo que ela viu diante de si naquele pavimento: uma grande família ocupava um canto do recinto, todos acocorados no chão e no mais profundo silêncio. Além do casal de progenitores, havia cinco crianças agarradas aos pais, com idades que deviam variar entre quatro e treze anos.

- Temos mais uma hóspede para o senhor, Sr. Kaminski – disse Vladmir, dirigindo-se respeitosamente ao chefe de família que abraçava os filhos e a esposa.

- O Sr. Kaminski é o dono desse prédio – explicou Dmitri a Yuliya. – Todos os inquilinos dele já se foram há muito tempo ou foram mortos pelos chucrutes, mas ele permaneceu aqui com a família.

- Por que o senhor ainda permanece em uma zona ocupada pelos alemães? – perguntou Yuliya ao Sr. Kaminski, penalizada ante a visão daquele quinteto de crianças subnutridas que se escondiam assustadas sob os braços protetores dos pais.

- Eu levei trinta anos da minha vida para construir este prédio, não vou permitir que os alemães façam o que bem entendem com o esforço de toda a minha existência como adulto – disse o Sr. Kaminski, com cara de poucos amigos.

“Idiota! Não percebe que a sua família é incomparavelmente mais importante que este maldito prédio, que, aliás, já está quase que totalmente destruído!” pensou em dizer Yuliya, indignada, mas manteve o silêncio.

- De onde você vem, garota? - perguntou Dmitri, com curiosidade. – O seu russo possui um sotaque que eu nunca havia ouvido antes.

- Do Uzbequistão – respondeu Shodiyeva.

- Ah, sim, uma uzbeque! Ontem eu soube que havia chegado uma leva fresquinha de uzbeques para carne de canhão. Eu sou Dmitri, lituano de nascença e com orgulho, e aquele ali é o Vladmir, que só de você olhar na cara dele já dá pra ver que é um autêntico georgiano do Cáucas...

- Cale essa maldita boca, Dmitri seu idiota! – sibilou o georgiano Vladmir entre dentes, enquanto espiava as ruas lá embaixo através de uma pequena janela retangular coberta de fuligem. – Lá vem os alemães roubar o equipamento dos nossos mortos... Bastardos!

Seguindo Dmitri até outra janela que dava uma visão panorâmica do local onde um regimento de soviéticos havia sido dizimado ainda há pouco, Yuliya divisou três soldados alemães que caminhavam lentamente entre os corpos estraçalhados dos uzbeques espalhados pelo chão. Um dos teutônicos carregava um enorme saco aberto, no qual os outros dois companheiros seus jogavam as pistolas, submetralhadoras, rifles e granadas apanhadas dos soviéticos mortos.

- E... estão roubando as nossas armas?! – sussurrou Yuliya, aparvalhada.

- Sim, garota – respondeu Dmitri – Os exércitos do Führer não são tão perfeitos assim como você pensa... Os malditos roubam as nossas armas, pois, se dependessem das deles, essa batalha já teria acabado há um bom tempo, e a nosso favor... Eles adoram as nossas Ppsh-41...

- Calados vocês dois! – alertou Vladmir, sem tirar os olhos da cena lá embaixo.

Yuliya voltou o olhar para os gatunos alemães. Agora os três se posicionavam em torno de um uzbeque tombado, ainda vivo. Um dos alemães, logo de cara, arrancou o rifle e as granadas do ferido, que se debatia debilmente diante dos seus inimigos – havia sido atingido por um tiro no seu flanco esquerdo, embora o sangramento já houvesse parado. Os alemães conferenciaram por um curto momento e, de repente, um deles sacou a sua pistola e meteu uma bala bem no meio da testa do uzbeque, que se imobilizou instantaneamente, morto. Os teutônicos gargalharam estrepitosamente. Yuliya se viu dominada por um ódio imensurável contra aqueles assassinos covardes. “Ele estava desarmado e ferido!” pensou a jovem, colérica. Então, lá embaixo, um dos três alemães avistou outro uzbeque, ferido na perna direita, que se arrastava penosamente sobre os corpos dos seus camaradas mortos. Os alemães, entre risos, iniciaram uma discussão, obviamente a respeito de qual deles iria matar o porco eslavo sub-humano ferido. Passados alguns instantes, um deles sacou a sua pistola e caminhou alegremente até a sua próxima vítima, que tentou desesperadamente se por de pé e fugir, voltando, no entanto, a se estrebuchar no chão úmido de sangue. Antes de acabar com o serviço que lhe havia sido designado, o alemão gargalhou, gritou maldições, cuspiu e chutou o uzbeque ferido, que – conforme Yuliya podia ouvir, penalizada – implorava pela sua vida. Finalmente, depois de ter se divertido com a sua presa, o chucrute apontou a sua lustrosa Luger para a cabeça do uzbeque, que finalmente se resignara ao seu destino, deixando-se cair no chão e chorando copiosamente.

Foi então que, mais por ódio irracional e incontrolável do que por uma atitude friamente ponderada e decidida, Yuliya Shodiyeva correu até um buraco na parede à sua esquerda, posicionou seu Mosin Nagant em direção ao alemão que dentro de poucos segundos mataria seu compatriota e murmurou, como que para justificar a atitude que tomaria:

- Ele é pior que um animal! Pior que um animal! Pior que um animal...

Ao se dar conta do que Yuliya iria fazer, Vladmir, enfurecido e temeroso, ainda tentou impedi-la de realizar aquela loucura, mas já era tarde, o gatilho foi puxado.

O tiro de Yuliya atingiu o alemão na nuca, atravessando o seu pescoço como faca quente na manteiga.

- É isso aí! Toma essa, Hans! – gritou Dmitri, socando o ar.

Os outros dois alemães, alarmados, olharam para todos os lados, procurando ver de onde viera a bala que matara seu companheiro (era difícil saber isso, pois os tiros e as metralhas ainda podiam ser ouvidos por todos os lados daquele bairro em ruínas; na batalha de Stalingrado nunca havia trégua).

- Idiota! – gritou Vladmir, embora não pudesse esconder o seu espanto com o tiro certeiro de Yuliya (o alemão morto se encontrava à mais de cinquenta metros de distância). – Agora os outros chucrutes vão chamar reforços, dizendo que aqui nesta rua há franco-atiradores de tocaia!

- Não se eu os impedir – disse Yuliya, sorrindo e se desvencilhando da mão de Vladmir que caíra sobre o seu ombro. Ao mesmo tempo, a jovem se assustava consigo mesma, pois, ao matar o alemão, sentira o mesmo prazer que sentia ao abater cervos e gansos no longínquo Uzbequistão.

Mas agora não era o momento para pensar nas transformações mentais que ocorrem após se matar outro ser humano. Os dois alemães restantes, depois do choque de ver o seu companheiro tombado com um chafariz de sangue vertendo do seu pescoço, desembestaram pela rua repleta de corpos, em direção à sua base localizada nas indústrias têxteis próximas. Pousando a cabeça no seu rifle, fazendo pontaria e respirando fundo (Vladmir dessa vez nem pensou em uma intervenção), Yuliya voltou a puxar o gatilho, acertando o alemão do saco bem na parte de trás da sua cabeça.

- Wow! – berrou Dmitri, cada vez mais empolgado com o talento de Shodiyeva. – Agora só mais um, minha filha!

Sem perder tempo, e cada vez mais eufórica, Yuliya recarregou seu Mosin Nagant e, não se preocupando muito em fazer pontaria, disparou novamente. Esse tiro acertou as costas do último alemão, que estava quase dobrando a esquina, à uma distância de mais de setenta metros!

- Genial! Esplêndido! Magistral! – exclamou Dmitri, batendo palmas e se ajoelhando diante de Yuliya.

Vladmir, boquiaberto, fitava Shodiyeva com os olhos esbugalhados e com as duas mãos na cabeça. Kaminski, o pai de família materialista, também foi até a atiradora uzbeque e a cumprimentou efusivamente. A esposa e as crianças do proprietário permaneceram agachadas a um canto, sem entender o motivo de toda aquela comemoração.

- Onde você aprendeu a atirar desse jeito, garota? – indagou o maravilhado Dmitri.

- Eu era caçadora na minha terra – respondeu Yuliya, tão cheia de si que se achou no direito de dizer: - alguém deveria ir buscar aquele nosso soldado ferido lá fora.

- É pra já! – disse servilmente o bom Dmitri, correndo apressado em direção às escadas que davam nos andares inferiores do prédio do Sr. Kaminski.

- Bons tiros, menina – disse Vladmir, ainda com a cara fechada. – Eu nunca tinha visto nada parecido na minha vida... Você por acaso é amiga ou discípula do nosso Zaitsev?

-Zai..o quê?

- Ah, esqueça – volveu o irritadiço Vladmir.
Minutos depois, Dmitri retornava, trazendo nos ombros o soldado ferido na perna que havia escapado por um triz da morte às mãos dos alemães. Quando descobriu quem o salvara, o jovem soldado, cujo nome era Vlassov e que também era um uzbeque, se desmanchou em agradecimentos, bênçãos e reverências para com Shodiyeva. Depois de muita conversa – na qual Yuliya descobriu que Vladmir e Dmitri já estavam naquele prédio há mais de uma semana, sendo que eram ali aceitos pela família Kaminski visto que esta se julgava necessitada de algum tipo de proteção –, os quatro militares ali presentes entabularam uma discussão a respeito do que deveria ser feito a partir daquele momento, pois os alemães não tardariam a vir procurar os seus três companheiros desaparecidos (empreendimento este que seria muito difícil, pois Dmitri já sumira com os três cadáveres dos alemães no momento em que fora buscar o soldado Vlassov).

- Temos que voltar para o nosso quartel imediatamente! – disse o jovem Vlassov, cuja perna ferida havia sido tratada pela senhora Kaminski, que era enfermeira. – Se ficarmos aqui, os alemães mais cedo ou mais tarde nos pegarão...

- Feche essa boca, garoto! – falou Vladmir com desprezo. – Se voltarmos para o nosso quartel como covardes que fugiram do combate, o general Kornienko nos mandará fuzilar imediatamente.

- O que faremos então?! – desesperou-se Vlassov.

- Estamos em um total de quatro homens aptos para o combate – falou Vladmir, sempre com cara de poucos amigos. – Esse é um número mais do que suficiente para formarmos uma guerrilha que dará uma boa dor de cabeça aos alemães.

- Sem falar que contamos com uma franco-atiradora tão boa quanto o grande Zaitsev! – exclamou Dmitri, que já era o maior fã de Yuliya.

- O que acha da ideia, Shodiyeva? – indagou Vladmir em tom trocista, como que duvidando da coragem da jovem uzbeque.

- Quando começa a diversão? – respondeu Yuliya, cujo estado de espírito se alterara drasticamente após o abatimento dos três alemães. Sem ter para onde correr e fugir, a única alternativa que lhe restava era mergulhar de cabeça naquela nova modalidade de caça que se lhe apresentava: a de seres humanos.

- Eu também lutarei! – disse, inesperadamente, o Sr. Kaminski. – Odeio a União Soviética, odeio Stálin e odeio essa merda de socialismo, mas lutarei por mim e por minha família.

- Muito bem, que assim seja! – disse Vladmir, que, devido à sua experiência como cabo do seu regimento de guardas, assumiria o comando do minúsculo grupo de guerrilha urbana que surgia naquele momento.

E foi assim que a residência do Sr. Kaminski se tornou a sede de um foco de guerrilha anti-alemã que existiu por treze dias nos subúrbios da região industrial da zona sul de Stalingrado. Realizando emboscadas a pequenos grupos de patrulheiros alemães que periodicamente cobriam o perímetro externo da indústria têxtil que servia de base para um enorme regimento do exército de Hitler, o grupo de guerrilheiros liderado pelo cabo georgiano Vladmir Saakashvili cumpriu impecavelmente a tarefa para a qual fora formado: causar uma terrível dor de cabeça aos malditos invasores nazistas.

Cada um dos cinco intrépidos guerrilheiros soviéticos cumpriu seu dever com grande honra e distinção: Dmitri, Vlassov e Vladmir, que com as suas Ppsh 41 trucidaram, no total, uma media de cinquenta alemães durante os treze dias de emboscadas diurnas e noturnas, e até mesmo o Sr. Kaminski, que nunca havia pegado em uma arma em toda a sua vida, contabilizou alguns chucrutes mortos na sua funesta lista de balanço do “trabalho” diário de um guerrilheiro.

Mas nenhum dos acima citados chegou sequer perto do estrago em vidas humanas causado por Yuliya Shodiyeva: setenta e dois alemães mortos em treze dias, estando incluídos entre estes cinco cabos e um general. Com o seu Mosin Nagant com luneta, encontrado por acaso em uma pilha de cadáveres de soldados soviéticos feita pelos alemães, Yuliya perdera todo o receio que tivera, na sua primeira noite em Stalingrado, de tirar a vida de outros seres humanos semelhantes a si. Com o passar dos dias, repletos de cruentas emboscadas aos alemães, a obsessão de Shodiyeva por “headshots” e as consequentes visões dos crânios espatifados dos alemães cresceu de tal forma que chegou a assustar até mesmo os seus companheiros de guerrilha. A tímida e comum camponesa uzbeque se convertera em uma máquina de matar sem qualquer sentimento.

O que realmente se passara nos compartimentos mais recônditos da mente de Yuliya Shodiyeva – e que ela nunca compartilharia com ninguém, fosse quem fosse – fora o seguinte: Após matar o primeiro alemão – aquele covarde que estava prestes a tirar a vida do indefeso Vlassov –, Yuliya sentiu que todas as suas ideologias de vida, moral e ética ruíam de tal maneira que jamais poderia ser revertida. Na sua mente, depois daquele disparo, nada mais a diferia dos assassinos que ela odiara tão intensamente durante toda a sua vida. Ela também era agora uma assassina. Sem conceber qualquer tipo de saída que a poupasse das consequências daquela atitude irrefletida que tomara, Yuliya mergulhou cada vez mais profundamente naquele mar de sangue cuja fonte primária era o cano do seu rifle.

No décimo quarto dia de guerrilha, quando toda a munição do grupo de comandados do cabo Vladmir não somava mais que uma caixa de balas para rifle, uma ofensiva soviética – agora contendo o surpreendente total de cinco divisões de infantaria – foi novamente empreendida contra as indústrias têxteis do sul de Stalingrado. Dessa vez, a vitória arrasadora foi obtida pelo Exército Vermelho, que não deixou um único alemão sequer escapar com vida daquele combate. Ao entardecer daquele mesmo dia, um grupo de patrulheiros russos que procurava por alemães sobreviventes descobriu o esconderijo dos guerrilheiros de Vladmir Saakashvili, que se lhes entregaram sem opor resistência.

A princípio, o general Vassili Kornienko – que era o chefe de todas as operações militares que se passavam na região sul de Stalingrado – não estava nem um pouco inclinado a acreditar que aquele pequeno grupo de quatro militares e um civil conseguira manter uma eficiente guerrilha por treze dias, matando ao todo mais de cento e trinta alemães em emboscadas. No entanto, um detalhe salvou os Guerrilheiros da Casa de Kaminski (era assim que mais tarde seriam chamados os guerrilheiros de Vladmir) da execução sumária sob a acusação de covardia: Dmitri, durante os treze dias de emboscadas contínuas, escondera todos os corpos dos alemães abatidos pelos guerrilheiros no porão de uma casa em ruínas. Kornienko em pessoa foi verificar a veracidade desta informação e, após o seu retorno da referida casa, imediatamente ordenou que os cinco guerrilheiros – Vladmir, Dmitri, Vlassov, Kaminski e Shodiyeva – fossem condecorados com a Ordem da Glória.

A coragem dos cinco Guerrilheiros da Casa de Kaminski se tornou conhecida de todos os soldados soviéticos que combatiam em Stalingrado e serviu de incentivo moral para a ação que levou à derrota dos nazistas na cidade que levava o nome de Iossif Stalin, em fevereiro de 1943.

                                                    * * *

Yuliya Shodiyeva, a mais aclamada dos cinco Guerrilheiros da Casa de Kaminski, permaneceu na 13ª Divisão de Guardas de Rifle após a vitória soviética em Stalingrado, participando de muitas das batalhas que empurraram os alemães de volta para o oeste. Em abril de 1945, Shodiyeva fazia parte do batalhão de atiradores de elite que tomaria parte na derradeira Batalha de Berlim. A jovem, agora uma das maiores e mais famosas snipers de todo o Exército Vermelho, já havia matado mais de trezentos inimigos desde o seu longínquo primeiro disparo, nos subúrbios da zona sul de Stalingrado.

A guerra na Europa estava chegando ao fim, o que inquietava muito o espírito perturbado e sem vida de Yuliya Shodiyeva. O que fazer depois que a guerra acabar? – era a pergunta que assombrava a mente da jovem uzbeque desde que os soviéticos haviam cruzado o Oder, em princípios abril. Matar havia sido a única razão da sua vida nos últimos três anos e o fim da guerra – ou melhor, a paz – significava o fim desta insana razão de viver. Yuliya não conseguia se imaginar retomando a sua vida antiga no norte do Uzbequistão, depois de todos os disparos fatais que efetuara na frente oriental. Apesar de todos os seus esforços mentais para se autoconvencer de que os alemães eram piores do que animais, não havia uma noite sequer em que Yuliya não era terrivelmente atormentada pelos espectros daqueles que matara. E a vida sem guerra, a vida de paz, onde não haveria nenhuma rota de fuga e descarrego para estas aflições, assomava completamente insuportável e lancinante para Shodiyeva, cuja centelha de vida ia se esvaindo lentamente do seu corpo outrora vigoroso, dia após dia, hora após hora, minuto após minuto.

- Avançar! Avançar! Não recuem! – gritava o general soviético para a infantaria que corria através de uma longa e outrora bela avenida em direção a um ninho de metralhadoras alemãs operadas por garotos que não podiam ter mais de quinze anos de idade. A infantaria corria desembestada enquanto as metralhadoras Mg42 cobravam à juros altos o seu tributo de sangue.

Yuliya assistia compenetrada a esta cena de cima de um prédio em ruínas: a ordem que recebera era eliminar os operadores de metralhadoras alemães, para assim facilitar o avanço da infantaria na avenida. Operação de rotina para Shodiyeva... No entanto, quando percebeu que os tais operadores não passavam de adolescentes, Yuliya sentiu que era incapaz de puxar o gatilho. “Esses garotos devem ter sido recrutados à força, assim como eu fui um dia”, pensou Yuliya, abaixando o seu Mosin Nagant. “E agora matam por que não têm outra opção que não seja matar...”

Mas poupar a vida daqueles garotos significava sacrificar a vida dos seus camaradas que corriam em direção às metralhadoras, sob a proibição expressa de recuar diante do fogo inimigo. Desesperada, furiosa e completamente impotente diante daquela situação insolúvel, Yuliya atirou seu rifle ao chão, gritou e chorou copiosamente, sem que, contudo, ninguém a ouvisse naquela Berlim que era um inferno de fogo e sangue.

Foi então que Shodiyeva chegou à uma decisão que a libertaria de todo o sofrimento constante a que se haviam resumido aqueles três anos de guerra. Descendo rapidamente as escadas do prédio em que estivera de tocaia, a sniper uzbeque se dirigiu até a avenida onde seus companheiros soviéticos eram dizimados pelas metralhas dos garotos alemães.

Quando dobrou a esquina da avenida, Yuliya ouviu por todos os lados os zunidos das balas das Mg42, que não paravam de cuspir aço nem por um segundo sequer. Mas, surpreendentemente, Shodiyeva – completamente desarmada e sem procurar cobertura nos escombros que se acumulavam na avenida – conseguiu dar alguns passos e avistar os seus camaradas mortos e moribundos antes que a primeira bala a atingisse no peito. Em seguida, outro projétil lhe atingiu o ombro e um terceiro a sua perna direita. Yuliya tombou de costas, quase nem sentindo a dor que aquelas balas lhe causavam, tão grande era a sua alegria por finalmente estar se libertando dos terríveis remorsos que a perseguiam até mesmo em seus sonhos e pesadelos. Em meio aos corpos sangrentos, explosões de bombas e granadas, gritos de ódio e desespero, e das balas que varavam o ar em todas as direções possíveis, Yuliya Shodiyeva, segundos antes da sua morte libertadora, sorriu placidamente, levemente descontente apenas com a derradeira constatação de que o instinto do ser humano jamais permitiria que as guerras selvagens entre os povos chegassem algum dia a um fim definitivo.


Última edição por Lunacharski em Sex 28 Set 2018, 12:43, editado 2 vez(es)
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Mensagem por Thear Sex 28 Set 2018, 04:21

Fascinante. Gostei bastante de Yuliya. Retratou bem uma mulher inteligente, mas de origens simples.

Esse conto me lembra como é limitada a representação da Segunda Guerra Mundial na mídia. Eu nunca fui grande fã de filmes de guerra, mas me surpreende que eu não consiga pensar em sequer um filme ou série que não foquem no front europeu ocidental ou na guerra do Pacífico. E claro, isso faz sentido... A maior parte dessa produção cultural é americana, e esses são os principais fronts nos quais eles lutaram. Mas não deixa de me incomodar que nossa visão do conflito em termos de produção cultural seja tão limitada.
Em videogames ocasionalmente podemos ver outras perspectivas nesse e em outros conflitos... Mas os games ainda não aprenderam a retratar a guerra como nada além de gloriosa e emocionante, com "Spec Ops: The Line" e "This War of Mine" sendo excessivamente elogiados por serem raras exceções.

Talvez em livros seja possível encontrar exemplos do que estou querendo. A unica ficção-histórica que eu já li que retrate os conflitos do Século 20 foi a Trilogia do Século de Ken Follet, mas os livros focam mais na politica que no militar.

Esse conto teu retrata a perspectiva de um pequeno pedaço da maior batalha da guerra... E ainda assim já é algo que nunca vi retratado em outras mídias (apesar de que sei que é em grande parte devido ao meu contato limitado com esse tipo de literatura). Imagino que outras boas estórias podem ser contadas focando em outros fronts como o norte da Africa, a China, ou ate a Noruega.

Sobre o texto em si, acho que talvez quando tu transferiu de um arquivo para o fórum a formatação tenha sido bagunçada. Existem vários momentos em que uma linha em branco teria sido bem vinda entre sequências de dialogo e parágrafos de narração.
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Mensagem por Lunacharski Sex 05 Out 2018, 11:05

Exatamente, eu acredito que, com exceção do bom "Círculo de Fogo" (2001), Hollywood não retrata a Frente Leste da Segunda Guerra Mundial. O cinema russo, por sua vez, tem produzido muitos filmes sobre a Grande Guerra Patriótica nos últimos dez anos. Mas, queiramos ou não, o orçamento para efeitos especiais e figurino é menor que os produtos de Hollywood, e a sua visão é muito patriótica, assim como os estadunidenses.
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